Mariana Ianelli nasceu em São Paulo, no dia 17 de outubro de 1979. Poeta, ensaísta, cronista e crítica literária, é neta do artista plástico Arcangelo Ianelli. Foi quatro vezes finalista do Prêmio Jabuti, na categoria poesia, com os livros Fazer silêncio (2005), Almádena (2007), O Amor e Depois (2013) e Tempo de Voltar (2016). Em 2008, recebeu o prêmio Fundação Bunge (antigo Moinho Santista) – Literatura, na categoria Juventude. Em 2011 obteve menção honrosa no Prêmio Casa de las Américas, em Cuba, pelo livro Treva Alvorada, na categoria Literatura Brasileira, e, em 2021, obteve com o livro “Dia de amar a casa” o prêmio Minuano de Literatura, na categoria crônica, pelo Instituto Estadual do Livro (IEL) da Secretaria da Cultura do Rio Grande do Sul.

PONTA DE LANÇA

Seria preciso não dizer
E isto o mais fundo
Orgasmo que pranteia.

Subir, espocar, descer
E no furor da alegria
Abrir-se também como flor
A velha úlcera encarniçada.
Uma luz que deliquescesse.

Ainda sem dizer,
Adorar o azinhavre, a ferrugem.
A maçã resplandecente no esterco.

Isto fosse a paz, e seria
A mais tácita das guerras.

De uma audácia tão franca
(Ponta de lança)
E tão áspero espanto,
Despir a cartilagem
Para chegar à cor do crepúsculo.

FLOR DO OFÍCIO

Emboscada no silêncio
Eu preparo a rosa inútil
Com as horas que salvei
Do desperdício.

Feito um verme
Decompondo ceticismo
Em força indômita,
Preparo e deito essa flor
No teu caminho
Para quando o teu corpo
(Tão quebrantável quanto o meu)
For sozinho pastorear
Seus demônios no vazio.

Quase dois mil anos
Guardado no deserto
Um salmo esperou
Para recobrar sua melodia –
E eu não te esperaria?

RETORNO

E quando apenas um deles
Restar
De quantos voltaram
Dos campos de trabalho,
Será o último alambrado
Retesado na memória –

Como se de novo pairasse
No mundo
A solidão do primeiro homem.

VARIAÇÕES PARA MORTE

Isto que se quer fora de casa,
Asa pestilenta, gosto acérrimo.

No fogo da controvérsia
Edifica o indiscutível
E reconduz a uma só pedra
Muros, troféus, arrependimentos.

Existe aquele que nem sabe
Lhe ter medo, tão perfeito lírio
Inerte no meio do campo,
Uma criança a menos
Para o alvo de escopetas.

Talvez de nós se compadeça,
Talvez conosco se deleite
Ao permitir mais uma obra,
Mais um progresso da ciência.

E ela espreita e ela se mete
Pelas frinchas, pelas guelras,
Desafina o instrumento
Bem no auge de uma récita.

Por dentro amadurece o nada,
Seiva que enrijece o fraco
E ao viçoso empalidece.

Em torno evola o seu aroma,
Fumo de pétala e cólera,
Alquímica metamorfose
De um homem em um poema.

O sumo do pavor e do prazer.

DIANTE DA PAISAGEM

Minha espera mortiça
Dita saudade
Com fogo e buril
Ganha outro nome
E como todos os nomes
Anseia a carne.

Relâmpago
Na madrugada
Sem testemunha
Além dos meus olhos
E uma estampa
De mãos pré-históricas
Num fundo de pedra
Deixa o rastro
No poema
Da seiva que emana
De pai para filho
E me convoca.

Dom de ser o cordeiro
Desgarrado do adeus,
De lançar vida nos baldios,
Perder ruína,
Bendita vida, trigueira vida
Pasmando o nada.

NA CASA DO PAI

Deixa-me te ouvir
No pulso do silêncio
E que eu não perca
Em desavença
O indício do teu passo.

O pomo da vida
Como um seio se ofereça,
Livre da guarda dos anjos,
Num paraíso selvagem.

De tal modo te saber
Me esclareça
Que o punho fechado
Sobre a mesa se desfaça.

E terei me esquecido
E terei me recordado
Na idade certa de dizer,
Se tempo houvesse:
Aqui não se morre mais.

COLHEITA

Não minto,
Pisei a terra malsã
Onde nada frutifica.

Como se me olhassem
Os olhos de um filho,
Pesa-me o que fiz
Por ter esquecido
Que podia ver além,
E eu era o filho.

Tanto me cansei,
Foi um gesto, um desmaio
Que as pernas não sentiram,
E dei por mim nessa terra fria,
Onde o tempo é um deus
Que tudo quer
Para o seu império
De coisas perdidas.

Desatentamente eu morria,
Prenhe de amores
Que não cuidei
E me beberam como parasitas.

Pesa-me voltar agora,
Ser devolvido.
Ressuscitado em fúria,
Sangue de Cristo
E Dionisíaco.

FILHO PRODÍGIO

Um animal
De grata obediência
Fui criado.

Sempre os teus favores,
A tua pontualidade,
Minha pele macia
Sem rastro de batalha.

Pai, eu era fraco:
Teu amor me apequenava.

Ver à distância
Eu via apenas por metáfora.
Não me punha em risco,
Não sabia errar.

À mesa dos teus mandamentos
Onde todos comiam,
Eu definhava.

Difícil partilha dos bens,
Ser o herdeiro
De tua audácia e desertar.

Perdido
Estranhei meu nome,
Fui jogador,
Do teu ouro fiz jorrar
A noite alta.

Pai, eu descobri a fome.
No descampado sob o sol
Amei e fui triste,
Me inventei como se inventam
Os donos de uma história.

Mais difícil que partir
Eu volto, eu te devolvo
Meu rosto endurecido
Mediante um coração em liberdade.

E festejamos juntos
E devoramos juntos
A morte do novilho cevado.

*Poemas do livro “Treva Alvorada”, Editora Iluminuras, 2010.