I

Estruge a orquestra, ressoa
A valsa alegre e brilhante.
Abre roda o bando; voa
O turbilhão deslumbrante.

Pelo braço do amante que a estremece,
Linda virgem se embala docemente:
São noivos. Flui do casto amor primeiro
No sorriso a delícia rubescente.

Mas ela pára. Chega um cavalheiro
E a arrebata na valsa que a fascina;
Delira o pé gentil; erguida a fímbria
Da perna ostenta a carnação divina.

Foge do moço a cor ao rosto, e a vida
Como se a alma do corpo se partira.
Não crê, duvida ainda, alonga os olhos;
Antes morrera, ou nunca mais a vira.

II

O ritornello festivo
Na sala a música solta;
E o par no abraço lascivo
Gira, passa, foge e volta.

Sente fel no sorriso contraído
O moço que de amor sorria há pouco:
Amargo escárnio verte o lábio trémulo;
A turba ouviu, pensando ouvir um louco.

“Nobre dama da Itália a formosura
No esplendor da nudez despia à vista,
Vivo modelo de brilhante quadro
Que enlevada sonhara alma de artista.”

“Mas génio era o pintor; a tela frágil
Página eterna de sublime história;
O pudor se imolava a tanto orgulho,
Mas vivia a beleza unida à glória.”

“Hoje se entrega em douda valsa a dama
Ao cavalheiro, e deste àquele passa.
Tateia mão profana o lindo talhe
Como se amolda um corpo em gesso ou massa.”

“Nem a mão é do génio, nem ó toque
Acende o estro que o poeta inspira,
Só desflora a beleza a branca luva
Do saltarello que na sala gira.”

“Prejuízos! Tem sede uma alma exausta
De fortes emoções. Deliba a virgem
De ignoto gozo em êxtase a primícia.
Que a preme o noivo, cisma na vertigem.. .

“O folguedo inocente a festa anima;

Frui a vida a travessa juventude;

Estátua mesmo nua é dama ilustre,
Quando a beleza veste-lhe a virtude.”

III

Desgrenha-se a valsa agora
Radiante de harmonia.
“— Mais uma volta, senhora,” —
À donzela o par dizia.

” — Mais uma volta! Repetiu o amante.
A fadiga o prazer brincando arrostra;

Mais sedutora a valsa é no abandono
Do cansaço que os frouxos membros prostra.”

“Vede! As cores acendem; arfa o seio;

No lábio freme o hábito ofegante;

Mole a fronte reclina; os olhos languem;

Nerva o desejo o corpo palpitante.”

“Nunca viste render-se a castidade
Soluçando num beijo o amor estreme?
Não; não viste! O mistério puro e santo
Foge Q raio da luz;, de ver-se teme.”

“Pois o baile o desvenda. Ei-lo sem pejo
Da turba aos olhos ávidos s’ofrece.
Ceva-se a vista ardente nos contornos
Do talhe qu’em requebros transparece.”

“Cobrem rendas e seda as formas tépidas?
Velam sombras também o níveo leito;
O que aos olhos se oculta sente o tato
Dos corpos que conchega o enlace estreito.”

“Valsai, valsai, bacantes! No delírio
Ao corso do prazer siga o tripúdio.
O mundo é vário, aplaude a mais formosa,
Nem receia a loureira um vão repúdio.”

“Finda a valsa. O elegante cavalheiro – ‘
Leva a dama ao marido, à mãe a filha;

Esposa e virgem, ambas profanadas
Desbota a face em que a volúpia brilha.”

IV

Da valsa o eco expirante
Geme ainda pela sala;
A virgem busca o amante;
Não o vê; ouve-lhe a fala.
“Eras luz; ficaste em treva;
Inda botão, já murchaste;
Seca flor que o vento leva,
No pó, no lodo, roscaste.
“Amei; era amor profundo;
Não foi por ti que o senti.
Anjo meu, fugiste ao mundo!. ..
Mulher.. . eu nunca te vi.”

V

Da história o fim referem que foi este:
Casa a moça com rico pretendente;
Tem de homem a figura, a alma no bolso
Carece de mulher que represente.

Dizem que são felizes; acredito.
Joga ele o voltarete; a mulher dança;
De primeira valsista ganhou fama,
Estrompa sete pares e não cansa.

A dez apaixonados corresponde;
Lembrança do passado não lhe pesa,
Mas, vaidade ou costume, inda provoca
O seu antigo amante que a despreza.