Por Amanda Azulay

A relação entre a Psicanálise e a Arte é inaugurada pelo próprio Sigmund Freud. A fim de construir uma ciência da psique, no século XX, desde o começo da sua investigação pelo inconsciente, ele buscou em obras de artes o suporte para criar suas teorias e concepções sobre o sujeito da psicanálise. Ele chegou, inclusive, a afirmar que o artista “saberia por intuição e antecipadamente o que os pobres cientistas trabalham e pesquisam humildemente, anos a fio, para compreender. ” (Maria Rita Kehl, 2016, p.88). Não à toa, outros teóricos importantes da psicanálise, como Lacan e Winnicott, continuaram atribuindo a arte uma fonte para a construção e continuação da obra freudiana.

Eu, como Psicóloga e estudante do pensamento psicanalítico, confesso que grande parte do meu aporte interpretativo e metafórico vêm sendo construído a partir da leitura de romances, contos, novelas, e claro, da POESIA.

Para iniciar a nova Coluna do Recanto do Poeta, que trará textos articulando a Psicologia e a Psicanálise com a Literatura e a Poesia, o poema de Ana Cristina Cesar, que recebe o título “idispiando” (neologismo para o ato de espiar), será aqui explorado para comentarmos um assunto de grande relevância na Psicanálise. Eis o poema:

“Idispiando” – Ana Cristina César (antigos e soltos – 2013, p.334)

o casal dança coladinho às vezes me pisa o pé
falo coisinhas eles nem ouvem me deito no chão
me estão pisando a bunda abertamente
fico ouvindo marchinhas para lembrar o primeiro amor
aquele big romance! da adolescência
dá nela, dá nela
tento esquecer mas eles pisam pisam pisam
no céu não tem porra de lua não tem porra de nada caceta que
[merda

será que depois de tanta piscadela ainda posso tragar
Drummond “no chão me deito à maneira dos desesperados”
falar belo assim?
tô vivendo com você num martírio sem igual
minha cabeça tá fedendo, tá saindo matéria chichilenta desse
[crâneo!

nunca mais tive um big romance!!
tão se beijando não vendo ó eu aqui caralho!
não é qualquer mulher que consegue conquistar meu coração
será que depois de tanta sacanagem eu ainda persisto no
[trilema edipiano?

Freud e o complexo de Édipo       

Segundo a teoria de Freud, “o Eu não é senhor em sua própria casa”, e, portanto, determinado por situações e expressões que não pode dominar. Como exemplo dessa universalização do sujeito para Freud, a tragédia Édipo Rei, escrita por Sófocles na antiguidade grega, até pouco tempo assistida em teatros e ainda lida em todo o mundo, é uma das bases para pensar na estruturação psíquica do sujeito e do desejo humano. Assim, inaugurando um dos conceitos teóricos e clínicos mais importantes para a teoria psíquica que propõe a divisão entre a consciência e o inconsciente, surge a pedra angular da Psicanálise: o Complexo de Édipo.

A reinterpretação do mito por Freud, no qual Édipo se casa com a sua mãe e mata o pai, a princípio sem saber, por ter sido criado longe dos dois, indica ao psicanalista o início do processo civilizatório a partir do tabu do incesto, já mencionado por ele, anteriormente, no texto Totem e Tabu (1913). É parte do que o levou a descoberta da sexualidade na infância e a repressão dos nossos desejos a partir do afeto não aceito de certos conteúdos e experiências infantis.

Fenômeno central do desenvolvimento psicossexual na primeira infância, o Complexo de Édipo é uma dinâmica de conflito afetivo triangular que toda criança vive, entre os três e cinco anos, a partir dos desejos amorosos e hostis em relação aos próprios pais. De forma resumida, nesse momento ela passa a desejar um dos seus genitores, normalmente do sexo oposto, rivalizando com o genitor do mesmo sexo.

Tudo isso faz parte da sua fantasia e do funcionamento mental da criança e esse complexo começa a ser dissolvido quando ela se depara com o limite para a satisfação dos seus desejos e do seu amor em relação a um dos seus genitores. A criança volta as costas ao Complexo de Édipo, por conta do temor da castração, ou, gradualmente, pela imposição da cultura, das leis e normas civilizatórias, e a energia psíquica sexual que antes era direcionada aos genitores, é sublimada, quando transformada em identificação com um dos pais, e inibida quanto ao seu objetivo, interrompendo o desenvolvimento sexual da criança até o seu retorno, durante a adolescência.

O encontro com a proibição de seus desejos representa a entrada do sujeito no processo simbólico. A criança, ao introjetar os limites para o seu Eu, passa a deslocar a energia para outros objetos, interesses e afeições. A vivência da castração, portanto, inaugura o sujeito da Psicanálise: marcado pela falta e pela incompletude, buscando formas de satisfazer o seu desejo barrado, deslizando de objeto em objeto, sem nunca obter a descarga total de sua excitação.

Voltando à Ana Cristina Cesar, não seria difícil supor, portanto, que seus estudos e sua trajetória tenham a levado aos textos de psicanálise, em algum momento. Ainda assim, ao explorar em sua escrita as vivências do seu cotidiano, o poema da “musa marginal” que revela nos últimos dois versos o conflito vivenciado durante o Complexo de Édipo, nos reforça a máxima da teoria do inconsciente: o afeto reprimido não está tão nas profundezas e tentará, a todo momento e de uma forma ou outra, emergir. Ao que parece, a escrita de Ana C. revelava seus objetos de desejos e traduzia o seu afeto. Mas, a ilusão de completude e a repetição de comportamentos, “depois de tanta sacanagem”, são evidenciadas simbolicamente quando, a partir da linguagem, ela acessa o seu inconsciente: “eu ainda persisto no [trilema edipiano?”

*Amanda Azulay é formada em Psicologia pela Universidade Santa Úrsula, do Rio de Janeiro. Ela assinará, todas as quintas-feiras, a coluna “Poesia e Psicanálise”.

Referências de leitura:

– A dissolução do Complexo de Édipo (1924) – Sigmund Freud, Obras Completas Volume 16 (Companhia das Letras)
– Totem e Tabu (1913) – Sigmund Freud, Obras Completas Volume 11 (Companhia das Letras)
– Deslocamentos do feminino – Maria Rita Kehl. Boitempo, 2016
– Poética / Ana Cristina Cesar – Companhia Das Letras, 2013
– Édipo Rei – Sófocles