Meu rio de mil lembranças
que o tempo nunca embaçou;
rio de tantos encômios
que muito aedo cantou;
bem antes de conhecer-te,
um mundo deles, sem ver-te,
já preparava-te as odes…
sei de quantos que, nas notas
traçavam uma tais rotas
que jamais eram as tuas,
nem sequer configuradas
pelos teus descobridores.

Poetas doutos, aos montes,
ou inspirados apenas,
vindos de terras vizinhas
e de terras advenas,
saídos de qualquer parte,
timbrando em configurar-te,
mananciais de cultura
incrementados de engenhos
doaram-te seus empenhos
por conhecerem-te a fama,
já por saberem teu nome
de santo doce, amorável.

Era fazer tua história
emproados em grandeza:
— um Homero sobre Tróia,
o Camões da portuguesa.

Jerusalém, de Torquato,
o Milton, do Paraíso,
enquanto, por ser preciso,
quem de tua água bebeu,
passeou no dorso teu,
brincou com teus lambaris
jamais que teve a coragem
de assinalar-te num verso.

Meu rio de mágoas tantas,
tua saga verdadeira
reconta lances de antanho
desta terra brasileira;
nas tuas margens arrasa
a jaça do sangue brasa
do braço que te empurrava
de recontro à correnteza,
dos peitos férreos, dureza ,
tais as gadanhas calosas
empunhando o varejão,
motor das barcas gementes.

Em fileira no convés,
aos tchaus dos toques nágua,
cada qual entoando loas
por desafogo de mágoa,
lá iam, cadenciados,
cumprindo a jornada rude,
beiradejando as barrancas
ao sinal de “sim” das carrancas
da marcha mais que forçada,
que lhes dava por merenda
o sol nos lombos curtidos.

Rio de suaves lendas
narradas pelos avós:
— caboclos pedindo fumo,
mãe-dágua de imã na voz,
quem provou do teu tempero
e sentiu teu desespero,
ao desleixo do abandono,
afirma que — acontecida —
a tua estória na vida
é harta vida de história…
Rio de nome de santo,
que santo és mais que no nome.

— II —

Meu rio de mil encantos,
de boca em boca cantado,
não só por quem te conhece
ou por quem se fez notado,
por seres, sem atavio,
o mais brasileiro rio
da unidade propalada;
— por nascimento e por morte,
por residência e transporte.
tuas águas estupendas
fecundam um centro vasto
de salvação ordenada.

Deslizando de uma aurícola
do coração brasileiro,
desta terra dadivosa
havias que ser celeiro.
Com teu líquido orientado
correndo por cada Estado,
terás, por certo, atingido
o valor do Nilo idoso,
do Volga terno, saudoso,
do Mississipi-Missouri,
pra só falar desses três
evidências de outros povos.

De quem em ti deposita
toda a sua confiança,
não há porque restringir
esta gama de esperança
calcada nos teus proveitos
evidenciados e aceitos
no contexto nacional.
Fartura moa em teu seio,
no húmus que sempre veio
e acumulado se deixa
na ilhas que dão relevo
ao teu dorso amarelado.

Enovelado na selva
que corre nas tuas veias
e revive em cada dobra
do teu corpo feito teias,
o ribeirinho se assiste
do arroz, da cana ao alpiste,
demais ramas produzidas
que a terra tudo vai dando,
até em não se plantando
nas cinco partes banhadas
deste mundão seco e hostil
que perfaz tua bacia.

Meu rio mais brasileiro
que corre nos meus sertões,
transformando as catadupas
em mil cavalos — milhões —
cavalgados com alegria,
força, saúde, euforia,
inundando em claridade,
das mansões senhoriais
às choupanas desiguais,
e pintalgando os roçados
onde reina o algodoal.

Pois se nasceste pra o bem
numa terra que não muda,
precária até de um tudo,
carente de toda ajuda,
paupérrima de possuintes
que até os dias seguintes
se mantinham sempre iguais,
tirante o tempo da cheia
quando, como coisa feia,
pulavas do leito enorme
para alagar alagadiços,
renovas as ipueiras.

 

— III —

Rio dos barcos vapores,
de luzes iguais ao dia,
às noites, quando aportavam
era uma só alegria
pra quem só tinha, de evento,
fora o filó fumacento,
as placas a querosene;
rio de ínsulas opadas
soberbamente empenhadas
a prover o ribeirinho
de um tudo que a zona dava
com prenhez de poucos meses.

Do peixe com jerimum,
da farofa de carneiro,
paçoca com melancia,
que se come o ano inteiro,
do bode com fruta-pão,
da manga rosa e o melão,
que melhor não há na terra,
dos imbus aos jatobás,
das pinhas aos araçás
que atulhavam as canoas,
vendiam-se nos paquetes
e sobravam pelas mesas…

Rio das minhas tristezas,
geradas por te saber
penhor de tanta riqueza
que o descaso não quer ver;
se hoje em dia te fomentam,
tuas águas alimentam
como todo e qualquer veneno
que acaba com o teu pescado
e transforma teu estado
de terra da promissão
em celeiros de moléstias,
fonte de desolação.

Teu primeiro despencado:
— logo depois da nascente
num socavão da Canastra,
vens fluindo mansamente
te jogas em Casca Danta
com tanta presteza, tanta
que dá em baixo te pões
a correr planalto em fora
até chegar Pirapora;
mas, antes, te comprometem
dar claridade de sol
às noites altas de Minas.

Represado em Três Marias,
primeira etapa indicada
de clarear os caminhos,
prossegues a caminhada
pintando um rastro de luz
no talismã que conduz
teu destino de grandeza.
No lombo dos surubins,
nas pegadas dos mandis
pinicando nas maretas
repousam os atestados
de tua virilidade.

Também, respeito aos cardumes
de tua fauna ictiológica,
bem poucos rios abonam
maior série biológica;
as piranhas e corvinas,
irmãos de espécies mais finas
tais piaus e matrinxãs,
os pacamãos abaulados,
os pacus mais os dourados
com ouro pelas escâmulas
convindo com o prateado
das nédias curimatás…

Tu leiloavas a abundância
que tuas águas criavam,
em conjunto com a poesia
que teus pertences geravam
num nascente extravagante,
num poente delirante
que só o luar vencia…
… as ariranhas brincando,
capivaras gungunando,
as emas correndo as mangas,
prometendo segurança
contra as picadas dos répteis…

jacarés quentando sol
nas croas prata-doiradass;
martins pescadores, sonsos,
macambúzios nas galhadas;
trabalhando a correnteza
os bugios em afoiteza,
um seguro à cauda do outro,
na travessia frequente;
ajajás de cor de poente,
tuiuius aristocráticos,
jaburus, garças, sofrês
chilrando o hino nacional…

— IV —

Hoje, quem canta teu canto
não tem voz, convive cego,
desconhecendo a virada
que se deu contra o teu pego;
que a superfície tristonha
pretende esconder, risonha.
a marca dos malefícios;
que os esgotos engolidos
ainda estão escondidos
no covil da insensatez,
pois quem te envenena os peixes,
não os terá para sempre.

Hoje, quem canta teu canto,
há de cantar soluçando
pelas mágoas de um presente
que já se vai prolongando,
cobrindo o passado ovante
que está ficando distante
de não mais acontecer;
que o aguardado futuro
prenuncie um bom auguro
no labor justificado,
para que a terra emprenhada
na certa possa parir.

Sobradinho — Casa Nova —
Santo-Sé — Pilão Arcado —
Remanso até Xique-xique
(um mundo inteiro inundado!)
afogados abençoam
nas asas que sobrevoam
sobre a beleza das messes
nas caatingas desbravadas,
sem secas, sem jagunçadas
formadas por necedade,
guiadas na ignorância
dos coronéis comandantes.

Descendo pro Juazeiro,
fim das antigas viagens
que os vapores realizavam
no tempo em que as passagens
eram fonte de prazer,
convidavam ao lazer,
mesmo quando nos estios,
e o rio, gigante louro,
passeava seu dorso de ouro
pelas terras escampadas
que se encontravam com o céu
na largueza do horizonte.

Paulo Afonso então falada
pela altura das caídas
como rival de Niágara,
punha as águas remoídas,
que após saltarem a pino
tomavam o seu destino
de caminho para o mar,
que por bem as respeitava
e com amor as abraçava
na afinidade de irmão,
aplaudindo a intrepidez
dos quilômetros corridos.

Paulo Afonso, hoje, é usina
(na mão do homem pulsou),
forja de força e riqueza
que o progresso fabricou;
entanto, as águas que movem
e as turbinas locomovem
não são as mesmas de outrora;
chegam fracas, corroídas,
doentes, empalecidas,
empapadas de vinhotos
vertidos por quem depende
da função que elas ocupam.

 

— V —

Quem te conhece e assistiu
teu passado transcorrer,
quem te vê neste momento
prestes até a morrer,
meu valho Chico querido,
que tristeza… compungido,
de coração abalado
levanto os olhos pra os céus
a pedir clemência a Deus
antes que te eliminem
e o mundo do teu viveiro
se acabe junto contigo.

Teus afluentes maiores,
de águas de enxergar o fundo
no tempo em que a placidez
manava pelo teu mundo,
não dizem mais o que são
nem porque correndo vão
atrás da desesperança;
seguem cumprindo o destino
que já foi feraz, supino,
transformando-os, no hodierno,
desvalidos, vis, espurcos,
em simulacros de rios.

Do Paracatu remisso
ao Paraopeba sangrado,
que rola no bojo do lixo
do minério triturado;
o das Velhas — o primor —
que já deu até vapor
construído em Sabará…
o Urucuia, o Carinhanha,
rios que davam, na apanha,
peixes pegados com a mão…
o Pardo, o Verde, o Corrente,
teu “Missouri” Rio Grande…

Rio das minha lembranças
conflagradas no presente
quando te vejo mendigo,
mais do que isso, doente,
as tuas margens rapadas,
tuas lagoas secadas,
teus peixes mortos boiando
que já ninguém mais aguenta;
tuas aves imigraram,
aquelas que não morreram
das piabas que fisgaram.

Meu santo Chico ancião,
rei de cinco estremaduras
das cinco partes de um todo
que banhavas com ternuras…
teu corpo se desdobrando
como que ia encantando
as terras do meu sertão,
no atual desencantadas,
porque também imoladas.
— Meu santo Chico ancião,
estão te crucificando
pra depois te cononizarem…