Luís Gonzaga Pinto da Gama nasceu em Salvador, Bahia, no dia 21 de junho de 1830. Um dos personagens mais importantes da história abolicionista do país, considerado “Patrono da Abolição da Escravidão do Brasil”, foi poeta, advogado, orador e jornalista.  Expoente do romantismo, também transformou sua obra poética em um documento da época, levando, de forma, crítica, ácida e irônica, sua luta pela liberdade negra e pelo fim da monarquia, contudo veio a morrer seis anos antes da concretização dessas causas.

Filho de mãe negra livre e pai branco, foi, contudo, feito escravo aos 10 anos. Permaneceu analfabeto até os 17. Conquistou judicialmente a própria liberdade e passou a atuar na advocacia em prol dos cativos, sendo já aos 29 anos autor consagrado e considerado o mais importante nome do abolicionismo no país.

Em relação à sua poesia, Gama publicou, em duas edições (1859 e 1861), sua única obra, “Primeiras Trovas Burlescas”, que o colocou no panteão literário do Brasil, apenas 12 depois de ter aprendido a ler. Este livro, dedicado a Salvador Furtado de Mendonça, magistrado que lecionava no Largo de S. Francisco, e que ali também dirigia a sua biblioteca, trazia em formas clássicas de poemas estróficos, como sonetos e trovas, um olhar em primeira pessoa, sem esconder a própria origem e sem deixar de proclamar sua negritude; ao lado disto, não deixa de usar as imagens líricas, tradicionais de seu tempo, como as evocações mitológicas (tais como Orfeu, Cupido etc.) ou aos poetas do passado (como Lamartine e Camões).

Luís Gama faleceu no dia 24 de agosto de 1882, em São Paulo, aos 52 anos. Em 2018 seu nome foi inscrito no Livro de Aço dos heróis nacionais depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves.

QUE MUNDO É ESTE?

Que mundo? que mundo é este?
Do fundo seio d’est’alma
Eu vejo… que fria calma
Dos humanos na fereza!
Vejo o livre feito escravo
Pelas leis da prepotência;
Vejo a riqueza em demência
Postergando a natureza[.]

Vejo o vício entronizado;
Vejo a virtude caída,
E de coroas cingida
A estátua fria do mal;
Vejo os traidores em chusma
Vendendo as almas impuras,
Remexendo as sepulturas
Por preço d’áureo metal.

Vejo fidalgos d’estopa,
Ostentando os seus brasões,
Feio enxerto de dobrões
Nos troncos da fidalguia;
Vejo este mundo às avessas,
Seguindo fatal derrota,
Enquanto farfante arrota
Podres grandezas de um dia!

Brônzea estátua – o rico surdo
Aos tristes ais da pobreza
Amostra com vil rudeza
Uma burra aferrolhada;
Manequim de estupidez
No orgulho vão de cobiça
Tem por divisa sediça
– Alguns vinténs e mais nada.

O poder é só dos Cresos,
A ciência é de encomenda;
Sem capital e sem renda
Com pouco peso – o que vai?
Talentos – palavrões ocos! –
Que nunca deixaram saldo;
Não há substância no caldo,
Que não tempera o metal!

Sisudez… que feia masc’ra!
Isso é peste, isso é veneno!
Se é pobre, nasceu pequeno,
Quem aspira a posição?
Não vê que é grande toleima
Querer subir sem moeda.
Pois não escapa da queda
Quem teve um leito no chão!

Que se empertigue enfunado
Algum sandeu que traz marca…
Reparem que a bisca embarca
Que leva à vela o batel!
E o povo que o vê fulgindo
Com lantejoulas brilhantes
Não olha p’ra o que foi d’antes,
E nem lhe enxerga o xarel!

E o mais é que zune e grasna
O pateta aparvalhado!
Parece que é deputado
Os Ministros fulminando;
Grita, berra, espe(r)noteia,
Calunia, faz intriga,
Mas logo fala a barriga,
E vai a teta chupando!

Digam lá o que quiserem,
Fale embora o maldizente;
Eu bem sei que tudo mente;
Sei que o mundo tem razão;
Se eu tivesse na algibeira
Alguns cobres, que ventura! –
Mudava o nome, a figura,
Ficava logo – Barão!

MOTE

E não pôde negar ser meu parente!

Soneto

Sou nobre, e de linhagem sublimada;
Descendo, em linhas retas dos Pegados,
Cuja lança feroz desbaratados
Fez tremer os guerreiros da Cruzada!

Minha mãe, que é de proa alcantilada,
Vem de raça dos Reis mais afamados;
– Blasonava entre um bando de pasmados
Certo parvo de casta amorenada.

Eis que brada um peralta retumbante [:]
” – Teu avô, que de cor era latente,
“Teve um neto mulato e mui pedante!”

ARREDA, QUE LÁ VAI UM VATE!

Quis um pobre sandeu apatetado
Sobre as grimpas guindar-se do Parnaso;
Empunha uma bandurra desmanchada,
E nas ancas se encaixa do Pégaso.

Às crinas de aferrando, como doudo,
No bandulho do bruto as pernas cerra;
Manquejando na prosa, em verso rengo,
Ufanoso da glória exclama e berra:

Ao Parnaso! Ao Parnaso subir eu quero!
Sonoroso afanil empunho ousado,
Para a fama elevar do sacrilégio
Com meu fofo bestunto estuporado.

Os gatos mostrarei fugindo aos ratos,
Vistosos frutos em arbusto peco;
Jumentos a voar, touros cantando.
E grandes tubarões nadando em seco!

Espanta-se o cavalo ao som da asneira,
E cuidando em si ter outro e tal,
Com saltos e corcovos desmedidos
O pateta lançou n’um tremedal.

Todo em lama, o coitado, besuntado,
A bandurra tocou destemperada,
E, por fim do descante, só ficaram
Asneiras e sandices – patacoada.

*Poemas do livro “Primeiras Trovas Burlescas”, Editora Martins Fontes, 2000