Hélder Malta Macedo nasceu em Krugersdorp, África do Sul, a 30 de novembro de 1935.  Poeta, romancista, ensaísta e crítico, é considerado um dos autores mais originais da literatura portuguesa contemporânea. Andarilho desde muito novo, morou em Moçambique durante a infância e passou a adolescência na Guiné e em São Tomé. Aos 18 anos muda-se para Lisboa, onde formou-se em direito. Justamente no período acadêmico, Helder também começa a escrever seus primeiros poemas. Em, 1957, com 21 anos, publica “Vesperal”, livro muito bem avaliado pelos grandes poetas da época, sobretudo Jorge de Sena, que se tornaria um grande amigo. Segundo o próprio Sena, Helder Macedo era um dos mais perfeitos poetas da sua geração, com um “estilo refinado e um notável domínio da expressão e do ritmo”.

Apesar de não ser associado a movimentos literários, Helder, durante a década de 50, fez parte do grupo denominado “Café Gelo”, que reunia, principalmente, poetas surrealistas. Opositor ao regime salazarista em Portugal, foi censurado, perseguido e preso, tendo que se exilar em Londres, com a sua esposa, Suzette Ribeiro, entre os anos 1960 e 1971. Na Inglaterra, eles ficaram muito amigos do casal de poetas Ted Hughes e Sylvia Plath. Inclusive, quando Plath se separou de Huges, ela morou por algum tempo na casa deles. Como forma de agradecimento, ela escreveu o poema “Papoilas em Outubro”, dedicando-os.

***

Sobrevivi a minha própria morte
sobrevivi
como um corpo sem comando
como um corpo desmembrado
cabeça decepada flutuando
na vaga escuridão indefinida
que a minha voz limita
e separa
em dois círculos concêntricos
dois espelhos
refletindo opostamente distorcido
o espaço enclausurado do meu canto
meu corpo sem fronteiras
ocupando pouco a pouco a escuridão
da morte indiferente que me cerca
e da verdade neutra que eu encerro.

***

da minha voz recebo só o eco
como da voz dum ser que já passou
ou não chegou
ou reside unicamente
no negro centro amorfo
onde a paixão indecifrada
que procuro definir
se bifurca
germinando a morte e  o nascimento
no ciclo transitório dos destinos.

***

Não é o bastante
que eu reconheça a minha solidão
e a preze como o início dum caminho.
Não é o bastante
ser livremente tudo quanto sei
e estar aberto a tudo que serei.
Tudo o que fui e o que sou e o que serei
já são iguais
no tempo do meu todo ignorado.
Quero abrir o que as palavras não descrevem
por já não responder ao sim e ao não
do meu espelho conhecível.
Já não me basta apenas dar um nome
à morte que me cabe enquanto vivo
porque morrer é ter perdido a morte
para sempre
tornando sem sentido o sim e o não
com que me circundei e defini-me.
Conheço-me as fronteiras.
Quero o resto.

O DESERTO

Agora o vazio
agora o vazio
agora o vazio
porque estou sem mim
agora o deserto
porque a vida que gerei
negou a vida

chorai chorai comigo
ou tapai-me a boca
com pedras e com estrume
chorai chorai chorai
porque aquele que tinha em si
a morte e a vida
escolheu a morte
recusou a vida

e eu não sei senão chorar
neste deserto
e eu não sei
e eu não sei
e o deserto é vazio
e o deserto sou eu
porque a vida que gerei
escolheu a morte

essas vozes que ouvias
meu menino
essas vozes que ouviste
e chamavam por ti
não era a morte não
que a morte é muda
e quando a morte fala
é porque é vida
era a voz do que tu és
e não conheces
a chamar-te para ti
a chamar o seu dono
para lhe mostrar
que toda a eternidade
está contida
no teu corpo
que podes conhecer
a eternidade
pois não há outra
além de conhecê-la
no prazo temporário
do teu ser
e só aí
só em ti
porque ela é tão finita
como tu
e tão mutável
e tudo que não seja
é só o nada
nada
nada

ah chorai comigo
ou então matai-me

recusaste
ser tudo quanto és
recusaste
encontrar-te
face a face
com o segredo de ti
ou cegaste
quando o viste
e guardaste só nos olhos
a visão
que projetaste no vazio
e então morreste
e morreste
antes de ser
pois é profeta
de mundo que não há
e não do mundo
e morreste
e morreste
e morreste antes de seres
e não deste o teu nome
à tua vida
e eu choro
choro
choro
sobre o teu pavor
de não teres alma
de não seres tu
a alma do teu corpo
e choro sobre mim
que te gerei
e pari morte
porque negaste
a vida que em mim tinha
e que te dei
e fiquei só
e estou sem nada
e o meu ventre está oco
é o vazio
e sequei
e sequei
como o deserto.

*Poemas do livro “Poesia 1957 – 1977”, Editora Círculo de Poesia, Lisboa, 1979.