Ingeborg Bachmann nasceu em Klagenfurt, Áustria, 25 de junho de 1926. Poeta, escritora e dramaturga, foi umas das principais autores de língua germânica do pós-guerra, fazendo parte do “Grupo de 47”, movimento poético de vanguarda na República Federal Alemã que revelaria nomes como o de Günter Grass e que dominaria as letras germânicas desde sua fundação até 1966. Durante 20 anos manteve relação amorosa com o poeta Paul Celan, marcada, primeiramente pela fase romântica, depois pela falha do amor. Essa relação, no entanto, influenciou muito a produção poética de ambos.
Em relação à sua obra, Ingeborg buscava uma renovação na linguagem. Sua poesia, elegante, mas com tons sombrios, mostra influência da Antiguidade clássica, do surrealismo e de escritores como Klopstock e Rainer Maria Rilke. A partir do ano de 1960, a escritora deixa de produzir poesia e se fixa na prosa, tomando mais como objeto temas sociais. Em 1964, recebeu o Prêmio Georg Büchner, o mais importante das letras alemã, como reconhecimento pelo conjunto de sua obra.
Ingeborg Bachmann faleceu no dia 17 de outubro de 1973, em Roma, Itália. Ela ficou internada por três semanas com graves queimaduras no corpo por causa de um incêndio em seu quarto de hotel. A real causa de tal incêndio, em que chegou a ser apontada como sendo a de um cigarro aceso, permanece desconhecida.
Porto morto
Bandeiras úmidas prendem dos mastros
nas cores que nenhum país teve
e flutuam para estrelas encharcadas
e para a lua, quieta na gávea, verde.
Mundo aquático dos descobridores!
Ondas cobrem todo caminho,
e de cima pinga a luz das redes
de estradas no ar, em desalinho.
Embaixo águas folheiam nas Bíblias,
e a bússola vai indicar a escuridão.
Lava-se ali o ouro dos sonhos,
e ao mar resta só a solidão.
Nenhum país, um único, restou intacto!
Avante o fio roto dos marujos, lá,
pois aos risos os loucos descobridores
caíram no braço morto do mar.
Mensagem
Do átrio celestial dos mortos recentes surge o sol.
Lá não estão os imortais,
mas o que tombaram, ouvimos dizer.
E brilho não se importa com decomposição. Nossa divindade,
a história, reservou-nos um túmulo,
de onde não há ressureição.
Todos os dias
A guerra não está mais declarada,
mas mantida. O inaudito
tornou-se ordinário. O herói
fica longe das lutas. O fraco
é deslocado para as zonas de combate.
O uniforme do dia é a paciência,
a condecoração, a pobre estrela
da esperança sobre o coração.
Ela é entregue,
quando nada mais acontece,
quando o fogo cerrado emudece,
quando o inimigo se tornou invisível
e a sombra do eterno armamento
cobre o céu.
Ela é entregue
pela fuga diante das bandeiras
pela valentia diante do amigo,
pela traição de segredos indignos
e a não obediência
de toda ordem.
O tempo adiado
Vêm aí dias piores.
O tempo adiado até nova ordem
surge no horizonte.
Em breve deves amarrar os sapatos
e espantar os cães para os charcos.
Pois as vísceras dos peixes
esfriaram no vento.
A luz da anileira arde pobremente.
Teu olhar pressente a penumbra:
o tempo adiado até nova ordem
desponta no horizonte.
De outro lado afunda tua amada na areia,
lhe sobe pelo cabelo esvoaçante,
lhe corta a palavra,
lhe ordena silêncio,
lhe encontra mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.
Não olha para trás.
Amarra teus sapatos.
Espanta os cães.
Joga os peixes ao mar.
Anula a anileira!
Vêm aí dias piores.
Sombra rosas sombra
Abaixo de um céu desconhecido
sombras rosas
sombras
acima de uma terra desconhecida
entre rosas e sombras
numa água desconhecida
minha sombra
Dito para a noite
Minhas dúvidas, amargas e insatisfeitas,
perdem-se nas profundezas da noite.
Cansaço canta em meu ouvido..
Escuto…
Isso já foi ontem!
Isso vem e já vai!
Conheço os caminhos do sono até a mais doce campina.
Lá não quero ir nunca.
Ainda não sei onde o escuro lago
ultimará meu tormento.
Um espelho há de haver lá,
claro e denso,
e quer,
cintilando de dor,
mostrar-nos o fundo de tudo.
De verdade
. Para Anna Akhmátova
Quem nunca se abateu pela palavra,
e digo-lhes,
quem só sabe cuidar de si
e com as palavras –
desse não há como cuidar.
Pelo caminho curto não,
e não pelo longo.
Tornar sustentável uma única frase,
resistir no assombro de palavras.
Esta frase não escreve aquele
que não a assina.
Dizer o obscuro
Assim como Orfeu, toco
a morte nas cordas da vida
e ante a beleza do mundo
e de teus olhos, que comandam o céu,
só sei dizer o obscuro.
Não esqueças que tu também, de repente,
naquela manhã, teu leito
ainda úmido de orvalho e o cravo
dormindo perto do teu coração,
viste o rio obscuro
passar por ti.
A corda do silêncio
estendida sobre a onda de sangue,
agarrei teu coração soante.
Tua mecha se transformara
em sombrio cabelo da noite,
os flocos negros da escuridão
cobriram teu rosto com neve.
Mas não pertenço a ti.
Agora lamentamos os dois.
Mas assim como Orfeu conheço
a vida ao lado da morte,
e me parecem azuis
teus olhos fechados para sempre.
*Poemas do livro “O tempo adiado e outros poemas”, Editora Todavia, 2021.
Tradução de Claudia Cavalcanti