Manuel Resende nasceu na cidade do Porto, Portugal, no dia 9 de Março de 1948. Poeta, jornalista e tradutor, tem uma obra poética marcada pelos experimentos surrealistas, de forma anarquista, para expressar suas percepções sobre o mundo. Como tradutor para a língua portuguesa foi um dos grandes especialistas em grego moderno. Faleceu em 29 de janeiro de 2020, em Almada, Portugal.
TÍTULO: UM MÚSICO NO METRO
Veio de além Odessa, com ralos cabelos,
Umas roupas nascidas do corpo, não sei,
Mas é fatal que tenha sido mesmo assim,
e um acordeão que lhe cresceu dos dedos.
Nunca eu pensara que ele pudesse existir,
Mas perante tal prova, tanta eslavitude,
Que remédio senão deixar entrar mais um
No mostruário de homens, panteão sem fim.
CRÔNICA DO TEMPO QUE PÁRA
Esvazio um pacote de açúcar
E os instantes caem rápidos
Só fica um pacote vazio
Amarrotado
E agora
Expulsos
Os vendilhões do tempo
Fico a senti-lo
Suspenso
No ar
A latejar
Comigo
Confesso
Que o céu é incompreensível
Mas que há um azul cheio de nada há
Um azul
Que nos fala por tato ao corpo
E o rio por outro lado
Sempre outro e o mesmo
Não vai a sítio nenhum porque está em todo o lado sempre
Na fonte e na foz e em todo o seu curso
Uma água a pulsar o sol do dia e à lua da noite
Se calhar
Só um barco ébrio
Julga que viaja nele
Quando o que se passa é que o braço de água o abraça
E o consola
Em todo o seu ser rio que deseja o barco
Outra coisa
Deitamos tantas palavras sobre o mundo
A ver se o mundo se arrepende
SAI DE CASA
Rasga este poema depois de o leres.
E depois espalha os bocados
Pelo vasto mundo
Ou então na tua rua, vai à aldeia, à praia,
Atira-o ao mar, deita-o ao lixo,
Para que venha o vento, o sol, a chuva, os homens do lixo,
Acabar com ele de vez.
Passado um dia,
Sai de casa e procura
Encontrá-lo de novo.
UMA PALAVRA
Longe de mim querer corromper a juventude,
É um trabalho que sobreleva as
Minhas capacidades.
Antes cicuta.
Mas tenho que explicar o sentido
Da palavra “desesperança”.
É uma esperança negativa.
A gente senta-se num cais
E deixa o sol trabalhar.
O sol minúsculo, isto é, o calor na pele.
Chamo a isto a experiência mínima.
Feito isto:
Venha de lá então
Essa catástrofe.
POR EXEMPLO
Por exemplo: os cheiros não têm nome
– Nem as nossas penas e alegrias.
Como separar o cheiro da alfazema, da urze, do beijo, dos corpos
Da alfazema, da urze, do beijo, dos corpos?
As palavras cobriram com o seu mar
A maior parte da terra
E lá dentro já só vivem peixes mudos
E plantas meio descoradas,
Mas
Ameaçadoras
Ou aduladoras
Embateram impotentes
Contra as falésias onde
Começa o reino dos cheiros e da emoção.
Como dizer
O cheiro da alfazema, da urze,
Dos beijos ou dos corpos,
Ou disso tudo junto?
Só estando lá.
ROUPA
Dá-lhe o sol
E
Esta tábua de engomar
Escorre.
A roupa fala ao sol pelo cheiro
Como as plantas ao sol.
Estranho.
Esta blusa
Ainda guarda
A forma
Dum corpo
Ausente.
*Poemas do livro “O mundo clamoroso, ainda”, Editora Angelus Novaes, 2004.