Carmen Moreno, nascida no Rio de Janeiro, é poeta e ficcionista. Membro titular do PEN Clube do Brasil, Bacharel em Artes Cênicas e Licenciada em Educação Artística, pela UNIRIO, possui diversos prêmios literários, como o Prêmio América Latina: Concurso de Contos Guimarães Rosa, Rádio França Internacional/Paris; Bolsa de Incentivo ao Escritor Brasileiro (poesia), MINC/BN, e Prêmio de Desenvolvimento de Roteiros Cinematográficos (MINC). Sua obra foi tema de dissertação de Mestrado pela Universidade Federal do Rio Grande/RS.

Irmã do também poeta Tanussi Cardoso, Carmen já publicou diversos livros, entre poesias, romances e contos, além de integrar mais de 60 coletâneas, dentre elas a “Antologia da Nova Poesia Brasileira”, organizado por Olga Savary, e “Mais 30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira”, organizado por Luiz Ruffato.

A poética de Carmen Moreno aborda, sobretudo, as imagens detalhadas de suas memórias afetivas: Família, infância, amores, são temas que perpassam por suas obras, trazendo à tona a visão da poeta enquanto mulher em ambientes ricos de mensagens, metáforas e simbolismos.

 

COLUNA VERTEBRAL

Perder sem perder-se.
Eis magia e coragem.
Miragem?
Subverter a voragem da dor
: sempre voltar a si.
Perder amores, cabelos, amigos,
memória, dentes e ilusão.
Perder a mãe!
Perder o prumo e aprumar-se:
seguir os miolos de pão
nas trilhas das florestas:
enganar as bruxas!
Quedar-se, esguia,
Querer-se
Refazer, a vida inteira,
o caminho de volta à semente.

O ÚLTIMO DIA

Na tarde em que te matei,
tuas pernas sossegaram fácil no soalho.
Estrangular-te não foi nada:
tive minha dor sedada
no éter do abandono.
Levantei-me, a seco,
sem remorso nas mãos,
assentei a mala no chão,
e segui, sem saída, a incerteza.
Por tempos travei o tremor no peito,
arrancando rancor entre as pedras,
para sustentar-me ereta e viva,
e não desperdiçar no teu túmulo,
além do amor, a bênção das manhãs.

NASCER SEM PAU ou TORNAR-SE MULHER
.                                                     para Simone de Beauvoir

O poder podado no parto.
Voz e vontade por tecer.
Ser flor insubmissa nos jardins dos cativeiros.
Abrir vias em terras fálicas.
Reflorestar a devastação dos desejos.
Demolir ritos, desmentir a falácia dos mitos.
Combater os julgadores, sem combalir-se.
Transcender, transgredir, insurgir-se.
Saber-se pássaro, sem céu pronto.
Aprender o voo nos penhascos.
Aprontar espelho, prazer, espinha dorsal.
Ser – um corpo sem uso.
Ousar a viração nas ventanias.
Amar sem servidão:
Semente singular em solo inseminado.
Dançar um solo, ser um som, seguir o solar.
Denunciar o desagrado,
o tiro, o corte, o corpo violado.
Curar-se do sonho derramado,
sangrar e prosseguir…

CTI

a mãe dorme
entre veias tubos fios
a ida por um fio
afio a fé
com a faca que me corta
deus não dorme
do alto me sacode
num golpe
baixo
que me eleva
o tempo
: réptil indolente
numa estrada que não se curva
acordo espero oro mastigo
acordo espero oro mastigo
tudo se estende e não passa
tudo passa
: fica pequeno e desimportante
a dor é um bicho gigante.

DESEJO

não beijei aquela mulher:
o beijo, cansado de ensaiar
o sonho secular,
o beijo sobre a língua, pedra
podre de querer ser
saliva e húmus
ímã e amanhã

*Poemas do livro “Sobre o Amor e Outras Traições”, Editora Patuá, 2021.

Herança

Existem o asilo e o exílio do velho,
hóspede dos herdeiros.
Prostrado na poltrona, macula a estética da sala:
fraldas por trocar, manias e silêncio.
O velho e seu alto custo – barganhando,
sua língua trôpega, sua dentadura afogada no copo.
Para que serve o velho e seus passos débeis,
sua fala fraturada, seus dias sem amanhã?
Para que serve o velho e sua história esmaecida,
ante os dias férteis dos entes que amou?
O velho e a surdez da casa
(a eutanásia homeopática da parentalha).
Para que servem os filhos do velho?

Do intraduzível

O que é o tempo, se não o salto abrupto,
o soco, o sim que não se espera?
O que é o amor, se não o deserto pós-quimera?
O que é a morte, se não a sombra do anjo,
o Sol que se enterra, o beijo amputado,
a serra?

Reflexões sobre grandezas

As águas são maiores que o rio
A língua não prova todo o sal do mar
Ninguém apreende a chuva além da vidraça
O instante é a poeira do tempo
Todo olhar é estreito na vastidão
O espírito do poema tem a dimensão do céu
A dor é menor que o Sol
A morte só conhece o corpo
O mundo real é o invisível
Deus é miúdo e tem o vigor das formigas…

*Poemas do livro “Para fabricar asas”, Editora Ibis Libris, 2015.