Ronaldo Werneck nasceu em Cataguases, Minas Gerais, a 23 de outubro de 1943. Poeta, jornalista, cronista e ensaísta, colaborou com vários jornais e revistas cariocas: Jornal do Brasil, Pasquim, Diário de Notícias, Última Hora, Revista Vozes, Revista Poesia Sempre e Revista História, ambas da Biblioteca Nacional. Em 2013, organizou a edição especial sobre Cataguases para o Suplemento Literário Minas Gerais. Desde 1968 colabora com o Suplemento, onde publicou poemas, resenhas e algumas críticas de cinema.

23.10.68

hoje tenho 25 anos
e queria escrever ócio
mas minhas palavras são de aço

hoje tenho 25 anos
e a poesia é difícil
mas o poema é meu ofício

hoje tenho 25 anos
e a poesia me chama
faço o poema como quem ama

a estrada

como a faca
o corpo
a estrada penetra
o sertão e corta
seus intestinos
como a faca
o morto

como a faca
a estrada se estende
como a faca
e seu desígnio
como o corpo
e seu signo

como o corpo
e seu signo
a estrada
é construção do silêncio
e compõe a paisagem

como o corpo
no sertão

como o morto
no chão

como a faca
a estrada brilha
ao sol argamassado
como a faca
no silêncio
de seus gumes prateados

a estrada o morto a faca o sertão
são palavras planas
habitadas por sol
e solidão

panem et circenses

palavra não coti
diano em ano
panaceia cota
de dano em dano
um verso e seu re
verso opus físsil pá
lavrador de ver
so panis et coellum pana
ceia et circenses a pa
larva de rapina em vão
um desvão do ver
bordado em pó e pano
ceia e um só coti
diano em ano ver
so um só me de
forma e fundo
pão e circo

verão

ah havia tanto
tanto joyce
no original reler
pound os gregos
os provençais
havia tanto
tanto tempo perdido

são duas horas
duas da tarde
o mar se esfrega
azul l’azur blue blau
por toda a costa
ocidental

é verão e as mulheres
espraiam belas
acidentais
suas costas
a areia as coxas
o colo reluzindo

é verão e são belas
duas horas de mar
e tarde o tempo
perdido
os gregos
os provençais

o sol sol solapando
os olhos trinta
trinta anos
de pão & pound

é verão e são
comoção belas
as mulheres

mas de que vale o poema
ante a mulher de ipanema?

círculo

e surge teu dorso dourado
e vem com a aurora teu rosto
e agora e ainda uma vez e outra mais
aqui estamos
no fragor de lençóis
emaranhados

alvos
nus
abandonados
aqui estamos
mar de arranhões

lentas mordidas
e o relógio tique-
tapeando o tempo

alvos
nus emaranhados
aqui estamos

mar de arranhões

lentas mordida
e o amor truque-
truncado o tédio
e o corpo assimilado

e surge teu dorso dourado
e vem com a aurora teu rosto
e ainda e ainda uma vez e

aço & estilhaço

são ásperas as veredas
do amor
pouco a pouco
despedaçadas

o corpo a corpo
e essa flor esquerda
subitamente despetalada

são ásperas
e o pouco corpo
vencido

são ásperas
e o corpo há pouco
apodrecido
são ásperas
e o amor
natimorto motor
enlouquecido

são ásperas
as veredas de aço
motor em pane
tumor tocando
o corpo/estilhaço

são ásperas
e o amor
pouco a pouco
despedaçado

são ásperas
e o amor

essa flor esquerda
subitamente despetalada

nova york

só num canto de loja distraído
esquecido numa rua do soho

a lupa no olho o relojoeiro
escuta o bater-rebater do mundo

e nos conduz sós ao topo do tempo
de seu consumo templário templo

fora do céu o skyline aqui está
tombado sol horizonte às avessas

a noite desce e escorre pelo mundo
nenhum barulho nem tampouco medo

do alto do império são formigas
as gentes grandes carros de brinquedo

o tempo nas mãos do relojoeiro
nada tem de sólido ou partido

tem pó esse mecanismo do mundo
mas nada de parado nem perdido

*Poemas do livro “momento vivo”, Editora Tipografia Musical (E T M), 2019.