Estela Rosa nasceu em Miguel Pereira, região serrana do Rio de Janeiro, em fevereiro de 1986. Foi finalista do Prêmio Rio de Literatura 2018 e esteve entre os três primeiros lugares na categoria poesia do Prêmio Off Flip de Literatura em 2017. É também Fundadora do “Farol Estúdio” e curadora na iniciativa “Mulheres que Escrevem”. Atualmente vive na cidade do Rio de Janeiro.

FITILHOS

Desde pequena
aprendi a abrir
embrulhos com cuidado
desfazer nós
desmontar embalagens
guardar

Os laços eram mais importantes que o presente

No armário
do quarto da minha mãe
laços, pacotes
caixas, fitilhos
amontoados por dentro
de outros laços
e outras caixas

ficaram lá
à espera de outro
presente
assim como eu

TEMPORADA DE CHUVA

Sentir falta
não é exatamente querer voltar
fico aqui voltando
todos os dias naqueles lugares
com os exatos mesmos barulhos

Com o barulho do moedor,
que mais moía amendoim do que carne

[Nunca tivemos dinheiro para alcatra]

Sempre tive temporadas de chuva
quando entravam pelas goteiras do telhado
fazendo mais barulho
que o moedor e eu
sentada na varanda

Às vezes deixava a cabeça
embaixo da goteira sem saber
que fazendo aquilo guardava
na memória algo tão idiota e belo
quanto poder comer alcatra

OS FIGOS

Sylvia Plath diz que é preciso
escolher um figo
Mas eu estranho
fico cabreira
Nunca soube escolher figos

Na minha época de pequena
havia a figueira centenária
da minha mãe

Bastava florescer e começava a guerra

A disputa, de ínicio
era eu e minha mãe
verde e maduro

[Antes de madurarem figos viram compotas]

Por meus olhos úmidos
e pela glicose alta
minha mãe desistia dos figos

[Figos nunca foram uma questão de escolha]

E aí mais uma batalha
Os sanhaços
tão azuis, tão bonitos
me carregavam de culpa

Feiro pequenas máquinas de devorar
eles escolhiam todos os figos
e eu qualquer figo maduro

Sem poder de escolha
eu defendia os sobreviventes

As armas eram
restos de tecido
retalhos costurados
bicos potentes
lanças na cara

No fim das contas,
as máquinas sempre vencem
e me restava só um figo
O que sobrava.

Então, Sylvia
nunca escolhi meu figo
minha escolha, silenciosa,
sempre foi desistir dos figos.

É que pra alguns, querida,
o que importa mesmo
é a batalha

ANTES DE LEVANTAR DA CAMA EU:

Abortei dois filhos
Matei cinco pessoas
Casei duas vezes
Desquitei três
Tive dois orgamos
Uma parada cardíaca
Escrevi um inventário
Morri
Comi bacalhau com batatas
Curei duas feridas
Cortei meu pulso esquerdo
Fui ao médico
Fiz sexo com o porteiro
Lavei os cabelos
E adoeci

E nem li o jornal hoje, oh boy!

REFLEXOS EM BANHEIROS PÚBLICOS

O espelho que me traduziu
pela primeira vez era
pintado em um banheiro largado
à mercê dos homens que estupram
em banheiros públicos independendo
se de primeiro segundo ou terceiro grau

foi o reflexo sujo que trouxe
à tona toda a clareza
de precisar ser
a que se defende
a que defende as outras
a que defende as unhas
os dentes
e os espelhos
todos eles quebrados

no chão
além muito além
das honras
estava
pela primeira vez eu
frente a um rosto
à mercê de tantos outros
à espreita esperando uma palavra
que melhor traduzisse o ruído
de uma mulher sozinha
frente a si mesma
escrita na porta
de um banheiro silencioso

o espelho que primeiro me traduziu
publicamente não tinha papel
como não tinha papel minha vida
antes do assombro
de se traduzir em outra

*Poemas do livro “um rojão atado à memória”, 7 Letras, 2019.