Isabel Meyrelles nasceu em Matosinhos, Portugal, em 29 de abril de 1929. Poeta e escultora, faz parte do movimento surrealista português da segunda metade do Século XX. À frente de seu tempo, ficou conhecida como “polemista” ao aparecer em locais públicos fumando cachimbo. Chegou a ser detida várias vezes por parecer “um homem vestido de mulher”. Foi amiga dos artistas e poetas Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas, membros do grupo dissidente Os Surrealistas. Juntos alugavam uma casa ao pescador Manuel Moscardo na Costa da Caparica, que ainda era uma zona deserta, onde Isabel praticava nudismo e se juntava aos rituais ocultistas. Precisou se exilar em Paris na década 50, por pressão da ditadura salazarista, retornando para seu país apenas em 1963. A partir dos anos 90 teve sua obra reconhecida, com antologias publicadas, exposições em homenagens, e, a 8 de junho de 2009, recebeu o grau de Comendador da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada.

.                        A Mário Cesariny de Vasconcelos

 

Não, meu amigo, a realidade
partiu a corda,
e de forma alguma agradece
ser a nossa espada cotidiana
o bife mal passado
sobre a bomba aux champignons.
Fatigada fatigada
tão fatigada de nós todos!
Mesmo tu, meu amor,
a roda do universo,
tu que eu fiz de plumas e silêncio,
tu minha noite cintilante,
a realidade fatigou-se de ti.

*

Tu já me arrumaste no armário dos restos
eu já te guardei na gaveta dos corpos perdidos
e das nossas memórias começamos a varrer
as pequenas gotas de felicidade
que já fomos.
Mas no tempo subjetivo,
tu és ainda o meu relógio de vento,
a minha máquina aceleradora de sangue,
e por quanto tempo ainda
as minhas mãos serão para ti
o noturno passeio do gato no telhado?

ADVINHA

É uma mesa negra e vazia
uma cadeira corcel expectante
é o tempo com passos de mosca
és tu meu círculo perfeito.

O ROSTO DESERTO

Todos os poetas fazem versos.
Não eu.
A minha máquina de fabricar palavras
utiliza um alfabeto protoplásmico
que reproduzir a tua imagem
incansavelmente
assim eu digo
é tempo que tu partas
e me deixas fazer poemas
como toda gente.

CAFÉ DU DÉPART, I

Minutos
nítidos e redondos
como gotas de água
Minutos.
Quando chegares
as palavras
estarão vazias de sentido

*Poemas do livro “Palavras Noturnas & outros poemas”, Escrituras São Paulo, 2006.