Luci Maria Dias Collin nasceu em Curitiba, Paraná, em 1964. Poeta, ficcionista, tradutora e educadora, é membro da Academia Paranaense de Letras. Em quase 40 anos de carreira, publicou artigos e ensaios em jornais e revistas literárias, participando também de antologias no Brasil e no exterior (EUA, França, Alemanha, México, Argentina, Peru e Uruguai). Foi finalista dos Prêmios Oceanos (2015), Jabuti (2017) e da Biblioteca Nacional (2022).
CICLORAMA
o infinito
daquela mulher
era um espelho
daquele animal
era um disparo
daquela menininha
era um coelho
daquele mendicante
era um retalho
daquele ancião
era um xarope
daquele temporal
era um compasso
daquele imperador
era um decálogo
daquele especialista
era um lapso
daquela meretriz
era um suspiro
daquele vendaval
era o abandono
daquela mulher
o infinito
INSONETO
De amor, ora direis, rever promessas
Que as chamas de uma voz não voltam mais
E sempre é de hora alguma esse momento
E nunca em face a mais meu bem secreto
Quisera revivê-lo em vão tormento
E em seu rosto esconder meu riso
Se se pudesse perder senso e siso
O meu passar ao ver o seu espanto
Certo é que o infinito nunca dure
(Vai-se a primeira estrela descoberta)
Quem sabe a espuma o fim de quem desperta
Na fresca madrugada eu encontrasse
O amor (que tive) – eu vos direi, no entanto
Que só se ama a ilusão que nasce
SENTIDO FIGURADO
notícias de longe falam em ressurreição
grande exercício de vésperas
e de mistérios primeiros
e agora é isso:
chuva a manhã inteira
gatos e seus grandes tédios
comida grudada na panela
e o telefone nunca toca
as contas se acumulam na escrivaninha
e os gestos velhos vão pro lixo
junto com a pilha de jornais nem lidos
e com as ideias nem tidas
notícias de sempre falam em grande alegria
e um dançar de muletas
e um roçar na covardia dos propósitos
homens e seus grandes edifícios
poeiras incrustada no vidro juntos
com as lembranças tão boas
e um pianinho frouxo sem melodia
e sem dedos mesmo
e a gente pensa na voz da estrela
e tenta esgarçar a fruta para ver se ainda
e o sumo é insosso o caldo é esparso e a carícia
ah sobre a carícia que se subentenda
é algo
que esquecemos
CORVO
quando eu vi que sangrava
pensei que fosse flecha facada bala perdida
mas era a chuva
quando eu vi que estilhaçava
pensei que fosse pedrada queda agudíssimo
mas era a lua
quando eu vi que ruía
pensei que fosse sismo vento tufão quem sabe
mas era saudade
era o fim da tarde
o fim da estrada
era o fim da história
quando eu vi que infeccionava
pensei que fosse erro médico azar sina
mas era a voz
aquela voz que é a tua
que nunca mais
dizia
ESTÉTICA DA CENA
o que meu olho imagina
entre migalha e galáxia
é o deslumbramento daquilo que
inaugura adornos
e que ocupa a boca florescida um
sorriso
o que meu olho cogita
entre estilhaço e elipse
é o reconhecimento da voz
sempre pincel
uma dobradura e seus compassos
um refresco
e duas vozes são muitas
a partitura esculpida
entre a saliva e o sopro
aquele sem esforço da mão
que toca a fruta
é meu olhar que monta a cena
e o gosto
é meu olhar que usa a pele
para ler o espaço
e resultar o espaço
e converter o dia em pulso
é meu olhar que descobre a casca
e o aceno
e os nomes escorrem
molusco e infinito
o texto uma palafita
e o olhos engendra
uma alforria que se funda
em ler-se em si o rascunho
do próprio olhar
*Poemas do livro “A Palavra Algo”, Editora Iluminuras, 2016.