Maria Rita Kehl nasceu em Campinas, São Paulo, a 10 de dezembro de 1951. Condecorada com a “Ordem do Rio Branco”, é uma das mais importantes psicanalistas do país, além de Poeta, jornalista, ensaísta, cronista e crítica literária. Em 2010, venceu o Prêmio Jabuti de Literatura na categoria “Educação, Psicologia e Psicanálise”, com o livro O Tempo e o Cão – A Atualidade das Depressões e recebeu o Prêmio Direitos Humanos, do Governo Federal, na categoria “Mídia e Direitos Humanos”.

Pinheiros

Poderia, digamos
não ser hoje.
Podia não ser agora
.                         nem aqui.
O ar grávido de possibilidades
e de cheiros; nessas coisas
ninguém é dono do próprio nariz.

Essa tarde, por exemplo
merece um sorvete
saudando o fim da chuva de verão.

Mas então      eu teria
.                       nove anos
.                       sandálias havaianas
e o bonde subindo a rua
.             Theodoro Sampaio

*

Às vezes é pura areia
carícia de pluma ou de lixa
textura de sopro ou pedra – depende
se me toca forte ou leve.
Mas sendo areia é sempre
desconforme
e vaza entre dedos, procura frestas
dobras e cabelos
nos olhos irrita.
Tanto faz se praia ou duna
sendo areia é sempre algum suplício.

E às vezes é simples leite
de unção alimento ou nata
brancura de sonho, valsa
não sei se refresco
ou parto.
Mas sendo leite constantemente
transborda
inunda as entranhas, espaços afoga.
E sendo leite é logo
transitório
simbiose impossível, sendo leite
logo se alucina e
conforme me afasta ou me deseja
se transfigura em vômito
ou em vinho.

o amor é uma droga pesada

como se eu fosse velha muito velha

pela milésima vez correndo essas estradas
aqui barranco de terra vermelha ali capim-gordura
incendiado ao sol
a casa pobre bucólica só de longe
o gado magro o arame farpado o vira-lata caipira
e eu mulher muito velha
voltando mais uma vez da viagem sem esferas
com minha inútil bagagem de antigos registros
.             sentimentais,
.             brasileiros.
o amor é um droga pesada
perde-se a exata dimensão da vida e
o retorno é lento, cheio de falsas visões
.              COLD TURKEY
me quero de volta que esses matos voltem a fazer sentido
sinto falta do mundo sintetizado em sua ordem nos meus
pensamentos
não esse oco reverberando
.                           mandalas nos ossos do crânio
.                           não a disposição de todas as certezas
O MUNDO APENAS sua representação
me contendo me dizendo
.                                       a que pertenço afinal

o amor é uma droga pesada
e eu uma velhíssima mulher
gozando pela milésima vez a viagem infernal.

literária

A poesia de cummings: antipática de tão pessoal.
Ezra Pound, uma atleta das bibliotecas.
Faço o caminho precário, de pedra em pedra, saltando rápido pra não cair.
Concentração difusa: quem me diz hoje pode ser Novalis
ou a poeta que acabo de descobrir – “me importa a felici-
dade de todas as coisas”.
Pulo fora. Telefono pra você. Sei tomar atitudes assim,
num emergência: conectar com o sexo o que está desligado,
premente, sem nome pairando aflito à flor da inteligência.

solo

Bom, já que temos direito a uma só pergunta por cabeça
gostaria de saber, o que nos fez vir tão longe encontrar a incerteza?
É claro que não pretendo embaraçá-lo – não, não se trata de
provocação – de qualquer forma vocês não imaginam o quanto seu
silêncio me conforta.

*Poemas do livro “Azougue 10 anos”, Azougue Editorial, 2004.