Nuno Manuel Gonçalves Júdice Glória nasceu em Portimão, Portugal, a 29 de abril de 1949. Poeta, professor, ensaísta e ficcionista, é um dos escritores portugueses mais premiados em seu país. Por mais de uma década foi diretor da revista literária Tabacaria, editada pela Casa Fernando Pessoa. É atualmente diretor da Revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian.

A sua estreia literária deu-se em 1972, com “A Noção de Poema”. A sua obra inclui antologias, edições de crítica literária, estudos sobre Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa, além de traduções, como da poeta Emily Dickinson. Também teve seus livros traduzidos para diversas línguas, como francês, italiano, espanhol, grego e idiomas árabes.

Solidão

Um mar rodeia o mundo de quem está só. É
o mar sem ondas do fim do mundo. A sua água
é negra; o seu horizonte não existe. Desenho
os contornos desse mar com um lápis de
névoa. Apago, sobre a sua superfície, todos
os pássaros. Vejo-os abrigarem-se da borracha
nas grutas do litoral: as aves assustadas da
solidão. << É um mundo impenetrável>>, diz
quem está só. Senta-se na margem, olhando
o seu caso. Nada mais existe para além dele, até
esse branco amanhecer que o obriga a lembrar-se
que está vivo. Então, espera que a maré suba,
nesse mar em marés, para tomar uma decisão.

Beatitude

No paraíso, na idade de ouro,
ouvindo os anjos tocarem alaúde
e flauta, as nuvens acorrem
como ovelhas
à sua beira. Então, os santos
pegam nas tesouras e começam
a tosquia das nuvens. Lá
em baixo, nos prados onde as almas
se juntam, começa a chover: e como
já não haverá guarda-chuvas,
na idade do ouro,
as almas constipam-se,
amaldiçoado
as ovelhas, as nuvens
e os santos. Só os anjos, continuando
a tocar, se riem, beatíficos, ouvindo
o bater da chuva
por entre o espirrar
das almas.

Filosofia

Construo o pensamento aos pedaços: cada
ideia que ponho em cima da mesa, é uma parte do
que penso; e ao ver como cada fragmento se
torna um todo, volto a parti-lo, para evitar
conclusões.

Flashback

Pode ser aí. Contigo. Com o teu corpo
ainda nu, ou vestido da luz que entra pelas
persianas velhas, trazendo a tremura
das folhas na trepadeira do quintal.

Podia ser de manhã, ou de madrugada,
sabendo que teria de te abraçar para que não
desses pelo frio, com o quarto ainda
húmido da noite, num fim de outono.

Podia não ter sido nunca, se não fossem
assim as coisas: a tua mão ao encontro da
minha, no tampo da mesa, como se fosse
aí que tudo se jogasse, entre duas mãos.

O amor, dizes-me

Escuto o silêncio das palavras. O seu silêncio
suspenso dos gestos com que elas desenham
cada objeto, cada pessoa, ou as próprias ideias
que delas dependem. Por vezes, porém, as
palavras são o seu próprio silêncio. Nascem
de uma espera, de um instante de atenção, da
súbita fixidez dos olhos amados, como se
também houvesse coisas que não precisam de
palavras para existir. É o caso deste sentimento
que nasce entre um e outro ser, que apenas
se advinha enquanto todos falam, em volta,
e que de súbito se confessa, traduzindo em
breves palavras a sua silenciosa verdade.

*Poemas do livro “Pedro, lembrando Inês”, Publicações Dom Quixote, 2009.