Tamara Kamenszain nasceu em Buenos Aires, Argentina, a 9 de fevereiro de 1947. Poeta, romancista e ensaísta, integrou a geração dos neobarrocos em seu país, ao lado de Arturo Carrera e Néstor Perlongher. Formada em filosofia, trabalhou como coordenadora de oficinas de poesia, durante a década de 80, quando também morou no México. Recebeu, entre outros títulos importantes, o Prêmio à Trajetória Rosa de Cobre (Biblioteca Nacional da Argentina, 2014), o Prêmio da Crítica (Feira do Livro de Buenos Aires, 2013), o Primeiro Prêmio de Poesia Latino-Americana (Festival da Lira do Equador, 2011), o Prêmio Konex de Poesia (2004 e 2014) e a Medalha de Honra Pablo Neruda do Governo do Chile (2004).

Muito crítica, principalmente em relação às condições das mulheres na sociedade, usou da linguagem poética para expressar as desigualdades que vivia, inclusive no meio literário. Constantemente, Tamara Kamenszains diferencia os termos “poeta” e “poetisa”, como formas preconceituosas, camufladas pelo machismo estrutural.

Tamara Kamenszains faleceu no dia 28 de julho de 2021, em Buenos Aires, Argentina.


1.

Poetisa é uma palavra doce
que deixamos de lado porque nos dava vergonha
e no entanto e no entanto
agora volta em um lenço
que nossas antepassadas amarraram
na garganta de suas líricas roucas.
Se ele me telefonar diga que saí
Alfonsina pedira enquanto se suicidava
e isso nos deu medo.
Melhor poeta do que poetisas
ficamos combinadas então
para garantirmos um lugarzinho que seja
nos cobiçados submundos do cânone.
E no entanto no entanto
outra vez ficamos de fora:
não sabíamos que os poetas
gostam de se tornar vates
já para nós garotas em linguagem inclusiva
a palavra vata não bate
porque nós mulheres não escrevemos
para convencer ninguém.
Por isso a poetisa que todas carregamos dentro
busca sair do armário agora mesmo
para um destino novo que já estava escrito
e que à beira de sua própria história revisitada
nunca cansou de esperar por nós.

12.

Garotas é uma palavra doce
que não temos que deixar de lado
mesmo que nossa idade a desminta.
“Se alguém me chamasse, me buscasse
perguntaria por uma menina de mil anos”,
nos diz Amelia Biagioni.
Sobre essa moça velha faz tempo escrevi um ensaio
chamado “No bosque de Amelia Biagioni”
porque ela descreve a si mesma
como chapeuzinho que arrasta pelo bosque
o peso de uma pergunta milenar:
“Com pulinhos de martim-caçador
chapeuzinho de cabelos brancos risonhos
tapa-olho perpétuo que oculta o assombro
sempre-verde traje de mítica palavra natural
botinas que sabem andar sobre a fogueira
e na mão um lápis azul – de meu sangue remoto –
que sela meus lábios
enquanto inscreve em mim sem rima outra versão
de minha pergunta milenar”.
Amelia não especifica de que versão de sua pergunta se trata
mas em um bosque onde a infância e a velhice se cruzam
o mais lógico no meu caso seria me perguntar
que caminho devo tomar para evitar o medo.
Por isso penso que se ela viesse hoje
certamente não se contaminaria
porque o chapéu de cabelos brancos risonhos
e o tapa-olho que oculta o assombro
a transformariam e mais uma das garotas
quem sabe deixar o lobo bobo
com a charada da idade.
E no entanto no entanto
o que começou com poesia
teve que rumar para o romance.
Quando Amelia leu meu ensaio
ficou incomodada porque em vários trechos
chamei de garotinha a menina, e as garotinhas,
segundo ela me escreveu depois em uma carta,
“não tem liberdade nem o dom de receber palpitações da milenar sabedoria”.
Eu que nessa época estava montada
na minha tola pretensão de ser Kamenszain e não Tamara
perguntei zangada à poetisa
se por acaso ela tinha medo de que seus leitores mais pacatos
se escandalizassem com o uso de uma palavra tão coloquial.
E no entanto e no entanto Amelia
não era nenhuma estrela do mainstream literário
mas sua críptica estranheza assustava
muito mais do que a palavra garotinha.
Foi assim que em um ato de magistério extremo
essa estranha usou para me rebater um oxímoro
com o qual aprendi que se uma palavra incomoda em
uma época
pode nos fazer reviver em outra.
Ela me explicou que o que eu escrevera sobre ela
lhe produzia “uma feliz ruptura que faz voar”.
Ela não só não tinha se contaminado
com os preconceitos de sua geração
mas se desvencilhara para poder voar até a minha
com uma generosidade que a colocou por cima
e a salvo de qualquer esteriótipo.

19.

Eu hoje neste confinamento que não é de hospital
mas que em meus pesadelos corporiza às vezes
situações de doença e até de morte
agradeço a Enrique suas apaixonadas e às vezes
bem-humoradas anotações que o conectam com sua casa
enquanto em mim na minha
despertam a vontade de escrever.
Mas como sempre o que começou como poesia
pode rumar para o romance, falta contar
que essa carta que ele me escreveu
foi recebida por mim só 24 anos depois de sua morte
como arquivo anexo de um email
que sua filha Andrea me enviou.
Ela me explica que dedicada a arrumar o arquivo de seu pai
deparou-se com um envelope fechado com meu endereço
que ele evidentemente não tinha chegado a mandar.
Em um poema de Diario de muerte o antivate afirma:
“Ninguém escreve do além
as memórias de além-túmulo são apócrifas”.
E no entanto no entanto…

15.

Minha mãe também preferia
ser chamada pelo sobrenome
dizia que no seu trabalho tinha que se mostrar dura
para poder lidar com os homens.
Por isso ela com sua dureza performática
tailleur, cigarro, uísque ao voltar do trabalho –
me lembra um pouco Juana Bignozzi.
Especialista em lidar com os vates
a poetisa boa de briga
os enfrentava quando ainda ninguém
tivera coragem de fazer isso.
Jogava neles versos de comadre como estes:
“Não estou falando da solidão da alma
essas são coisas de poeta
solidão para mim é jantar sozinha na minha cidade”.
Ou estes outros em que a rima é uma brincadeira:
“enquanto meus colegas escrevem os grandes versos da poesia argentina
eu fervo vagem na cozinha”.
Juana de fato teria gostado
de ser confundida com mais uma
das garotas de lenço verde
nessa Praça de avós militantes
pela qual ela teria avançado
exibindo um cartaz que dissesse
“ninguém sabe que uma mulher que entrou na velhice
voltar a sentir”.

5.

A palavra feminicídio
não estava entre nós
a palavra muso
não estava entre nós
a palavra vata
não é pra nós.
Mas a palavra poetisa sim
embora nos envergonhasse.
Eu não sou poetisa sou poeta
disse a mim mesma e mil vezes
aos vinte anos
não sou Tamara sou Kamenszain
me queixei sempre que alguém por escrito
aludia à minha obra me chamando pelo nome.
Quando as poetisas uruguaias já eram
puro nome
quando na Argentina não havia divórcio
quando na Argentina ainda nem há aborto legal
o Uruguai pequeno paraíso vintage
continua saindo na frente de nós
porque as poetisas com nome são
jovens velhas que se lidas de novo
piscarão o olho mais atual
para que a poesia de amor
renasça como renasce
em uns versos de Cecília Pavón que dizem:
“quando estou no ônibus, ex-namorado,
como é lindo lembrar de você”.
Alfonsina fez o seu virar ex
em uma operação tão coloquial
que antecipou Pavón enquanto escandalizava
a sobriedade borgiana:
“se ele me telefonar novamente
diga que não insista, que sai”
escreveu com um pé no mar
porque ao que parece o que começa como poesia
está destinado a terminar como romance.

*Poemas do livro “Garotas em tempos suspenso”, Editora Círculo de Poemas, 2023.
Tradução de Paloma Vidal.