Angela Melim nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 1952. Escritora e tradutora  considerada uma das poetas mais efervescentes da cena contracultural brasileira.  Publicou a obra poética O vidro o nome (1974), Das tripas coração (1978), As mulheres gostam muito (1979), Vale o escrito (1981), Os caminhos do Conhecer (1981), O outro retrato (1982) – manuscrito circulante, Poemas (1987), Mais dia menos dia (1996) e Possibilidades (2006). Sob o título Día más día menos, foi editada na Argentina sua obra completa, traduzida para o espanhol por Bárbara Belloc e Teresa Arijón (Buenos Aires, 2017). Em 1991 recebeu o Prêmio Eneida da UBE-RJ pelo livro de contos Ainda ontem, e em 2003 o Prêmio de Literatura da Fundação Vitae para Artes por Personagem. Atualmente vive no Rio de Janeiro.

Com certeza

me segura
igual unha
meia-lua
cabelo mínimo
– pode voar
num sopro –
me segura pela cintura
as duas palmas macias
cala
aquela voz de longe, esguia
mulher cantando em alemão
a tela do rádio
bafejando com o som
aquilo cala –
não lembro se dormi
esta dor aqui, esta aqui
a mesma
– mola –
antigo martelo repetindo o medo
me segura com certeza
para eu não
chorar.

Homem

No verão se vê o amor
nos teus olhos líquido
debaixo de pelos ousados.
Triangulares
perfeitos peitos seguros
em riste embora apontem para baixo
onde a pele fabrica linhas paralelas
com a função de derreter o sol em várias frentes.
E mais abaixo o cheiro
de guardado – pequeno calor, úmido
reveste formações macias
fofo tapete de folha
para sacrário – fruta
da brava floresta tropical que corta o sal da praia.

Duas borboletas

Céu de luz vejo
deitada
no sol da cama

gaivota
plana
pipa

a cara
diagonal

e os fiapos – tiques.

Tortas fachadas recorto
na crista
da pedreira:

cenário de cartão.

E no clarão tremido
arrancos
deslizes

– o balé amarelo
do par.

Bonitos poemas vêm de ti
borboleta
sozinha
que me amarela a janela
daqui

pegaste o te
e lançaste-me
numa tempestade
de temas

estremeço
psicografo poemas

uma luz solo
outra contínuo

depois de morta sopro
para você

Ar
te

só aqui me permitem
ser como sou.

brota do ar como um pé de qualquer coisa, couve
ou martela, surdo, até se poder ouvir
vem dos sonhos
se vê no mundo, da janela do ônibus
escuta-se na rua sem querer

oh minha vida esfacelada
oh vontade
que via
oh saudade dolorida
nossos motivos
à toa

acordo e me chega a toada
já no ritmo
nem levanto da cama e copio
– os dedos grossos

a pele do corpo lisa
o couro
(que valeu ouro)

mas a cara, de velha
zangada e triste

Açim

Chegou bilhete seu do céu
azul.

Um espírito
– baixo –
finge ser você,
querido.

– Nem do outro lado
tenho paz.
E a culpa é tua, mulher.

Saudade ensina tanto.
Agora só me falo pela sua voz.

Flores

Colho olhos fixos
de novo
boca seca
aberta
– o não completo me suspende
entre parênteses invisíveis e imponentes
no ar parado –
de passeio neste campo imperceptível
minado
que a pasma semântica do absurdo
colore de avesso e espanto,
flores que explodem ao contrário.

*

Os bons poemas são
prosa abrupta
cortante.
Imediatamente se entende
a fúria
ou a calma imperturbável
deles.
No estrépito está
o jogo das palavras –
choque e sacolejo de vagões engatados.
Atrás dos vidros deslizam as paisagens
que a turba comprimida não avista:
devastações ritmadas tão sonâmbulas
quanto aceleradas.
Nada é difícil no ar-condicionado
mas um pressa horizontal de trilho
urge
e dentro dela
ninguém cede o assento a mulheres
nem velhos.

Os bons poemas são
os últimos.
O que ainda se tem força de buscar.
Dali onde se chegou
– o fim do mar –
avançar
no brilho
ou fundo
sem marear.

*Poemas do livro “Toda Vida – Poesia Reunida”, Companhia das Letras, 2024.