António Maria Lisboa Júnior nasceu em Lisboa, Portugal, no dia 1º de Agosto de 1928. Considerado um dos mais radicais poetas surrealistas portugueses, viveu apenas 25 anos e deixou uma obra curta, fragmentária e hermética, onde a filosofia e a poesia unem-se para expressar vozes para um novo mundo.

Embora inserido no surrealismo, a obra de António Maria Lisboa caracteriza-se por uma faceta ocultista e esotérica que a torna muito particular. O próprio poeta preferia intitular-se “metacientista”, porque, como argumentou numa carta ao amigo Mário Cesariny, “a Surrealidade não é só do Surrealismo, o Surreal é do Poeta de todos os tempos, de todos os grandes poetas”. Em 1977 foi publicado um volume com a sua obra completa organizado por Cesariny.

António Maria Lisboa faleceu no dia 11 de Novembro de 1953, em Lisboa, Portugal.

Z

As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento

e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era ao que me lembro
da cor do jardim.

H

Sei que dez anos nos separam de pedras
e raízes nos ouvidos

e ver-te, ó menina do quarto vermelho,
era ver a tua bondade, o teu olhar terno
de Borboleta no Infinito

e toda essa sucessão de pontos vermelhos no espaço
em que tu eras uma estrela que caiu
e incendiou a terra

lá longe numa fonte cheia de fogos-fátuos.

O AMOR DE ARTHUR RIMBAUD
.   O MESTRE DO SILÊNCIO

Na montanha onde moram as estrelas
bosques que existem há mil anos
de cabelos negros como o luar e a brisa da tarde
quando entra branda entre as pétalas das flores
que se inclinam sobre o morto que dorme
e misteriosamente repete:

“Sur l’onde calme et noite où dorment les étoiles
Un chant mystérieux tombe des astres d’or”
semi-saído da terra com um olho infinito aberto
morto há um ano ao nascer da lua
morto há um dia ao nascer da rosa
morto há um sonho, morto há um gesto
frente ao sopor das árvores da noite
tocou o seio infante numa primavera
e misteriosamente repete:

“O pâle Ophélia! belle comme la neige!
Ciel! Amour! Liberté! Quel rêve, ô pauvre Folle!”
transparente sobre a terra mole de lava de estrela
sobre cabelos idênticos aos dos mortos desolados
morto há mil anos repete:

“La blanche Ophélia flotte comme un grand lys”

o morto misteriosamente diz:

“Il y a une horloge qui ne sonne pas”

UMA VIDA ESQUECIDA

Eu conheço o vidro franja por franja
meticulosamente
à porta parado um homem oco
franja por franja no espaço
meticulosamente oco um porta parada.
Um relógio dá dez badaladas ininterruptamente
dez badaladas por brincadeira dança
um homem com pernas de mulher
e um olhar devasso no Marte
passo por passo um criança chora
uma águia e um vampiro recuados no tempo.

CONJUGAÇÃO

A construção dos poemas é uma vela aberta ao meio e coberta de bolor
é a suspensão momentânea dum arrepio num dente fino
Como Uma Agulha

A construção dos poemas
A CONS
TRU
ÇÃO DOS
POEMAS

é como matar muitas pulgas com unhas de oiro azul
é como amar formigas brancas obsessivamente junto ao peito
olhar uma paisagem em frente e ver um abismo
ver o abismo e sentir uma pedrada nas costas
sentir a pedrada e imaginar-se sem pensar de repente

,                            NUM TÚMULO EXAUSTIVO.

POEMA DO COMEÇO

Eu num camelo a atravessar o deserto
com um ombro franjado de túmulos numa mão muito aberta

Eu num barco a remos a atravessar a janela
da pirâmide com um copo esguio e azul coberto de escamas

Eu na praia e um vento de agulhas
com um Cavalo-Triângulo enterrado na areia

Eu na noite com um objeto estranho na algibeira
– trago-te Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de musgo

*Poemas do livro “Poesia”, Assírio e Alvim, 2008.