Aníbal Augusto Ferro de Madureira Beça Neto, nasceu no dia 13 de setembro de 1946, em Manaus, Amazonas. Poeta, tradutor, compositor, teatrólogo e jornalista, Foi diretor de produção da TV Cultura do Amazonas, Conselheiro da Secretaria de Cultura do Amazonas e vice-presidente da UBE-AM (União Brasileira de Escritores). Em 1994, recebeu o Prêmio Nacional Nestlé, em sua sexta versão, com o livro Suíte para os Habitantes da Noite.

Ao lado de seus afazeres literários e musicais, destacou-se também em prol da causa da integração cultural latino-americana, seja traduzindo escritores de países vizinhos, ou participando e organizando festivais e encontros de poesia. Representou o Brasil no IX Festival Internacional de Poesia de Medellín, no III Encontro Ulrika de escritores em Bogotá e no VI Encuentro Internacional de Escritores de Monterrey.

Aníbal Beça faleceu no dia 25 de agosto de 2009, aos 62 anos.


VI

Em tom de old-blues para o piano, sax,
contrabaixo, guitarra e bateria

Quem saberia de mim
se me visse assim como estou
rendido ao aço das manhãs
pastoreando esse meu cão
por essas ruas tão tranqüilas

Que gemelar seria eu
linha paralela de vida
e tão parelha dessas ruas
fagulha dupla de mão única
bifurcada e sem retorno
nos afazeres do meu sonho

Em mim eu sou o que não fui
comigo fui o que não era:
o derrotado nominado
o nominado vencedor
e resta só o testemunho
do cão que me acompanha agora
e dessas ruas que me sabem antes

XXX

Rondó aleatório com variações
regidas pelo clima e pelo instante

As minhas mãos são pentagramas
acordando sons no teu corpo
Ponta de dedos ímã o tato se vai
percutindo notas descobrindo poros
um toque de cheiro no silêncio úmido

Nos teus cabelos teço a fina partitura
feita de duas claves:
a mão direita
sola um sol agudíssimo
na tua verbena escondida
A esquerda se faz em fá
o gave fado
o gesto do teu tesão
fala do meu pulsar

(um sopro morno fala baixo
no bafo abafado em tua boca)

O suor dos nossos corpos
– enquanto garoa no lençol –
lava por um instante
o tempo de um ritmo sem metrônomo
um cheiro concreto de amêndoas

XXVII

Samba-canção para ser acompanhado de regional

Mulher de um sonho distante
na névoa densa da noite
eu te sabia em mim
dispersa em minha canção

Eu te queria tão próxima
de luz e raio constante
pra te dizer tantas coisas
como o mais comum amante

Sussurrar no teu ouvido
palavras soltas ao vento
mas te vais sem deixar rastros
dona e senhora do tempo

Mulher de um sonho distante
não sei se existes de fato
sei da maneira que chegas
no clique de algum retrato

Mas teu rosto que não foge
nem teu riso enigmático
nesse mistério que explode
como um flash fotográfico

mulher sem nome consomes
minha sede de ficar
nas asas da tua gruta
meu abrigo meu luar

Nesse instante és meu apelo
aumentando esse tesão
só te quero verdadeira
se teu nome for paixão

XXI

Salsa-songo para marimba e congas

No trote tropel de prata
da casta constelação
No chão os cascos de arminho
desfiam vidas tranchãs
O gume mais que afiado
demanda sorte malsã
E é tanto e é muito de fogo
a lua da caminhada
E é tanto e é muito de água
o sol dessa camarinha
Espada benta abençoai
vosso cavalo de encanto
Luz brilhante alumiai
vosso cavalo de Santo
No trote tropel de prata
no manto brilho de estrela
São sete estrelas     seu mano
sete campinas brilhantes
sete batalhas de luz
Anjo guerreiro do Norte
Leão de longe savana
vestindo flores dos campos
bebendo as águas mais claras
no claro sol das manhãs

XVIII

Cançoneta para flauta doce

Ovelha negra desperta
com teu costado de cúmulos
porque breve a noite chega
com sua conversa túrgida

Ovelha negra ovelha negra
te guarda nesse crepúsculo

Ovelha negra te afasta
dessa mansidão escura
segue a flauta que te cata
e te guia para a gruta

Ovelha negra ovelha negra
te guarda nessa fundura

Porque assim quer teu pastor
para a tosa da manhã
Não sofras por teu temor
que a vida te é temporã

Ovelha negra ovelha negra
te guarda com tua lã

XXII

A poesia é o assunto do poema,
Dai parte e o retorno, e ai

Retorna. E entre os dois, entre
A partida e o retorno, existe

Uma ausência no real,
As coisas como são. Segundo cremos.

Mas estarão de fato separados?
Será uma ausência para o poema, que toma

Suas veras aparências lá, verde de sol,
Vermelho-nuvem, toque de terra, céu pensante?

Disso é que toma. Ou dá, talvez,
Nesse intercurso universal.

 XXIII

Algumas soluções finais, como um dueto
Com o coveiro: uma voz nas nuvens,

Outra na terra, uma voz de éter
E outra voz cheirando a bebida;

A voz do éter predomina, o som
Do canto do coveiro sobre a neve

Apostrofando coroas de cravos,
A voz das nuvens serena e final,

Então o estertor sereno e final,
O imaginado e o real, idéia

E verdade, Dichtung und Wahrheit, toda
Dúvida dissipada, qual refrão

Que se repete ano após ano, um refrão
Sobre a natureza das coisas como são.

*Poemas do livro “Suíte para os habitante da noite”, Editora Paz e Terra, 1995.