Francis Jean Gaston Alfred Ponge nasceu a 27 de março de 1899, em Montpellier, França. Um dos grande poetas franceses do Século XX, trouxe uma nova roupagem poética para os seus poemas, aprofundando, a partir dos significados das palavras, novas formas de linguagens. Ligou-se ao movimento surrealista em 1922, mas largou o grupo por não concordar com várias práticas do grupo. Sua principal obra, intitulada Le Parti Pris de Choses (“O partido das coisas”), de 1942, refuta a efusão lírica e a subjetividade aos buscar descrever os objetos cotidianos em uma linguagem direta e científica.  Ponge desenvolveu em sua prosa poética a realidade da língua, que, em sua opinião, dignifica e humaniza todo o ser humano. Em suas descrições um pouco humorísticas, emprega neologismos criados a partir da etimologia das palavras. Francis Ponge morreu no dia 6 de agosto de 1988 em Paris.


À sonhadora matéria

Provavelmente, tudo e todos – e nós mesmos – não somos senão sonhos imediatos da divina Matéria:
Os produtos textuais da sua prodigiosa imaginação.
E assim, num certo sentido, poder-se-ia dizer que a natureza inteira, nela incluindo os homens, não é senão uma escrita; mas uma escrita de uma certa espécie; uma escrita não-significativa, pelo fato de que não se refere a nenhum sistema de significação; de que se trata de um universo indefinido: propriamente imenso, sem medidas.
Enquanto que o mundo das palavras é um universo finito.
Mas pelo fato de ser composto por esses objetos muito particulares e particularmente comoventes, os sons significativos e articulados de que somos capazes, que nos servem ao mesmo tempo para nomear os objetos da natureza e para exprimir os nossos sentimentos,
Basta sem dúvida nomear o que quer que seja – de uma certa maneira – para exprimir tudo do homem e, no mesmo lance, glorificar a matéria, exemplo para a escrita e providência do espírito.

A paisagem

O horizonte, sobrelinhado com acentos vaporosos, parece escrito em pequenos caracteres, com tinta mais ou menos pálida segundo os jogos de luz.
Do que está mais próximo, não usufruo mais do que como de um quadro,
Do que está ainda mais próximo, do que como de esculturas, ou arquiteturas,
A seguir, da própria realidade das coisas a meus pés, como de alimentos, com uma sensação de verdadeira indigestão,
Até que finalmente em meu corpo tudo se engolfa e levanta vôo pela cabeça, como que por chaminé que desembocasse em pleno céu.

Os prazeres da porta

Os reis não tocam nas portas.

Não conhecem essa ventura: fazer avançar docemente ou com rudeza um desses grandes painéis familiares, voltar-se em sua direção para recolocá-lo no lugar – ter nos braços uma porta.
… A ventura de empunhar no ventre pelo nó de porcelana um desses altos obstáculos de um cômodo; o corpo-a-corpo rápido pelo qual por um instante o passo se detém, o olho se abre e o corpo inteiro se acomoda ao seu novo aposento.
Com a mão amiga retém ainda, antes de empurrá-la decididamente e encerrar-se – o que o estalido da mola potente mas bem azeitada agradavelmente lhe assegura.

Apocalipses

1
Com a aurora a ressumar, este sinal: em minha janela, uma árvore nua.

2
Um grito esquartejou a aurora.
Ao homem que retomara o espelho, pareceu-lhe que uma nova noite o invadia.
Suplicava que lhe fosse poupada essa insustentável evidência.

A borboleta

Quando o açúcar elaborado nos talos surge no fundo das flores, como em xícaras mal lavadas – um grande esforço se produz no solo de onde, súbito, as borboletas alçam voo.
Porém, como cada lagarta teve a cabeça ofuscada e enegrecida, e o torso adelgaçado pela verdadeira explosão de onde as asas simétricas flamejaram,
Desde então, a borboleta errática só pousa ao acaso do percurso, ou quase isso.
Fósforo voejante, sua chama não é contagiosa. E, além do mais, ela chega muito tarde e pode apenas constatar as flores desabrochadas. Não importa: comportando-se como acendedora de lâmpadas, verifica a provisão de óleo de cada uma. Pousa no cimo das flores o farrapo atrofiado que carrega, e vinga assim sua longa humilhação amorfa de lagarta ao pé dos caules.
Minúsculo veleiro dos ares maltratado pelo vento como pétala superfetatória, ela vagabundeia pelo jardim.

O Insignificante

“O que há de mais atrativo que o azul, a não ser uma nuvem, na dócil claridade?
Por isso prefiro ao silêncio uma teoria qualquer e, mais ainda, a uma página branca um escrito quando passa por insignificante.
É todo meu exercício e meu suspiro higiênico.”