Octávio Mora nasceu na Argentina, em 1934. Radicado no Brasil, foi um dos principais representantes da “Geração 45” da poesia brasileira. Estreou na literatura já com uma das suas principais obras, o livro “Ausência Viva”, de 1956.  Depois publicou Terra imóvel (1959). A esses se seguiram Corpo habitável (1967), Pulso horário (1968), Saldo prévio (1968) e Exílio urbano (1975). Aposentou-se como professor titular de Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Faleceu em 2012.

GALOPE FLUVIAL

A cavaleiro da água
avanço com o rio,
em galope de espuma
solitário, com frio,
ínfimo em minha mágoa,
imenso em minha, viva,
cordilheira que avança
rompendo a perspectiva
em fragmentos montanhas
perdidas na lembrança,
pedras as mais estranhas
e bruma e bruma e bruma,
a cavaleiro, mesmo
sem cavalo e sem barco,
de uma água tão densa
que avança e deixa atrás,
mais que rasto, presença,
como flexa sem arco,
tiro sem alvo, a êsmo,
de revólver no escuro,
precipito-me, avanço
e liquido tropeço
em rápidos, estreitos
vedados ao regresso,
e desço e desço e puro,
lavados, liquefeitos
meus passos, caio: manso.

TELÚRICOS (SERRA DO MAR)

Chegado o instante, afundas,
chegado ao alto, abrem-se abismos
sob os teus pés, são asas
os teus braços mas vôo único a queda,
o silêncio floresce entre mutismos
amantes e sem têrmo,
águas, até então rasas,
como que se avolumam, rotundas,
alarga-se a visão, que já não veda
o sol do dia êrmo,
na noite das montanhas que se movem
animais de tão lentas,
de tão sem prévio rumo,
puro relêvo,
ofegantes e fluídas como seios,
paisagens úmidas e nevoentas,
respiração e enlêvo
ofertando-se a seu próprio consumo,
tu e tua amada, com reservas diurnas
de mulher jovem,
chegado o instante, com as suas furnas
iluminando-se, de pronto, entre
tenebrosos segundos,
relâmpagos medrosos como coxas,
manchas da violência, roxas,
os mamilos do mêdo, êsses profundos
recôncavos de um ventre.

AMBOS PRIMORDIAIS

A sêde, espectro da água,.
Assim, do próprio sono a forma humana,
antes do corpo.
Bôcas sem lábios,
a solidão do corpo passa à sombra
e o acompanha.

Terrestre, a humana imagem
feminina, repete-se em montanhas.
Rios: dos ombros
caem-lhe os braços.
A paisagem que se ergue no horizonte,
linear, dança.

Curvilínea paisagem
ajustada à erosão de suas ancas.
Justo, o contôrno
em liberdade
deixa-a: mover-se, prêsa a seus hormônios
pode e o céu ganha.

Assim as suas nádegas
sob a epiderme justa, à luz colante,
ao andar, sôltas.
Sabe-se grávida
ao apalpar-se, úmida de sono,
sob outras mãos.

Nascida e tão sem pálpebras
os olhos fecha apenas quando ama.
Esconde o rosto
(caída máscara)
livre mas prêsa à solidão do homem.
São um só: ambos.

SUGESTÃO DE VENTO

Cavalo em fuga, sugestão de vento
anulando distâncias na paisagem
aérea de seu fôlego. Uma aragem
desprende-se da terra em movimento
sob as patas: o ar torna-se lento
diante do cavalo; e atrás, agem
fôrças estranhas, à sua passagem
subtraindo os vestígios. Alimento
de cavalos em fuga, o ar corrente
é feno e evidência de horizonte
na planície do tempo sem substância
que os cavalos devoram. Realmente:
torna-se a terra sólida defronte
dos cavalos, e estende-se à distância.

AUSÊNCIA MINERAL

Terra sombria: vento sêco,
silêncio mineral, profundidade.
As planícies diante dos teus olhos
buscavam a espessura
das montanhas, e no fundo dos rios
as distâncias, davam à transparência
redondeza terrestre
de horizonte: contôrno e estatura
de planeta, de vento e, solidez,
a solidão do homem junto aos rios,
sua presença dura,
sua voz de cavalos em galope
e sua ausência mineral, profunda.

Contôrno e estatura pétrea
tinha a terra: nas margens de seus rios
bebia sua sêde – terra sêca,
no horizonte bebia-se a si mesma,
e, no ar, ventos, caminhos.

Atrás como adiante
dos caminhos, sempre a mesma distância
do que voltam, para como os bois
de tanto olhar a terra imóvel, sêca,
sem uma sombra, nada, e, à distância
entre as margens, os chifres e a tristeza
dos bois, bebendo os rios.

A terra, calcinada.
E sua ossada líquida, seus rios,
sêco pó; suas vértebras, montanhas,
afundadas montanhas, e seu pasto,
sua verde epiderme, na memória
curtida como as pedras,
sem uma única árvore. Sem sombra.

Cavalos devoravam a planície,
ou a si mesma devorou-se? Resta,
dos cavalos, o vento,
e, do galope, o quê? Uma distância
porém nada separa porque nada
resta. Sòmente o horizonte.

Um horizonte resta. A terra
porque sempre se afasta
experimenta a dúvida dos rios
através das planícies: mar de pasto
a paisagem se alarga, mas o olhar,
mas as nuvens, mas o vento
jamais sua substância liquefeita.
Porque sempre se afasta, jamais chega
a terra a se apalpar redonda.

Horizontes detêm o seu olhar,
horizontes, e o mar. O mar que estava
no seu fundo, em sua imobilidade,
antes do sal e antes da água: sêde
horizontal de eternidade.

Sômente o tempo voa.
Os cavalos procuram sua sombra
na terra, sob as árvores, e o vento
levanta o pó da morte, o horizonte,
os mortos, a planície.
Jamais porém os rios, inclinados,
ou suas águas, onde pasta o mar
em suas próprias margens.

*Poemas do livro “Antologia da Nova Poesia Brasileira”, Editora Orfeu, 1967.