Golgona Anghel nasceu na România, parte da Ilíria Oriental, em 1979, mas é radicada em Portugal. Poeta, Professora Auxiliar no Departamento de Estudos Portugueses da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa e Investigadora no Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT-FCSH/UNL), licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, na variante Estudos Portugueses e Espanhóis, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Em 2009, concluiu o Doutoramento em Estudos Portugueses, com especialização em Literatura Portuguesa Contemporânea, na mesma universidade (FLUL). Publicou alguns livros de ensaios — Eis-me acordado muito tempo depois de mim, uma biografia de Al Berto (Quasi Edições, 2006), Cronos decide morrer, viva Aiôn, Leituras do tempo em Al Berto (Língua Morta, 2013), A forma custa caro. Exercícios inconformados (Documenta, 2018) — e preparou uma edição diplomática dos Diários do poeta Al Berto (Assírio & Alvim, 2012). Escreve também poesia: Vim porque me pagavam, (Mariposa Azual, 2011), Como uma flor de plástico na montra de um talho (Assírio & Alvim, 2013), Nadar na piscina dos pequenos (Assírio & Alvim, 2017).
Sentes-te bem ao ar livre.
Ainda assim, preferes o ataúde.
Descansa, minha vida,
mesmo se tu até em sonhos acredites
que todos merecemos salvar-nos.
Sobrevivermo-nos.
Dorme, meu estupor,
enquanto as jarras de lírios
dissimulam a porta do teu breve inferno.
Já sei.
Tens medo.
Estás perdida na tua condição de mulher
e queres agora encontrar uma saída.
Relaxa, meu amor,
a meta é simples:
cair no esquecimento.
Tu vais chegar lá antes.
Eram invisíveis
como as demoras
e como as demoras talvez prevalecessem
finalmente. Desde a aurora,
e em espasmos sucessivos,
tinham vindo a esbater-se,
primeiro, contra as paredes do quarto,
depois, contra os cristais da sala.
Foi um de tais golpes (e não o menor) o que eu agarrei
e desviei com o mau hálito
que a decepção nos faz crescer na boca,
até que alcançou a sua crista de xisto
e se desmoronou,
a pique,
sobre a tua cabeça.
Nasceu para dar a volta a isto tudo.
Eu, é mais para encher chouriço, dar horas à espera.
E juro que há quem faça fila para ver.
Enfim, hoje em dia, nada me espanta.
A vizinha do lado, que costuma
ler autores sefarditas do século XVIII,
todos os dias, à hora do chá,
faz uma tarte Tatin maravilhosa.
Diz que é fácil,
que é só dar a volta,
que com tanta prática
até é capaz de escrever OS Lusíadas ao contrário.
Nunca chegou a explicar como.
Uma pena.
Eu, que sou um romântico,
queria estudar literatura, mas lia demasiado
devagar. De maneira que não me foi possível.
Passei então para a filosofia. Para estudar Kant,
a velocidade não é importante.
Basta ler uma página por dia.
Ainda sim fracassei.
Lia tudo o que não fosse livros:
anúncios de publicidade, nomes de lojas,
ementas de restaurantes, etiquetas de roupa,
instruções, receitas.
Tudo o que não tinha capas interessava-me.
Passei dias a fio a estudar mapas,
plantas de edifícios,
projetos de obras públicas.
Foi assim que aprendi que há um atalho
que liga os cangurus,
os carteiristas e as edições de bolso.
Os procedimentos são sempre complexos.
As vias, múltiplas.
A faca, no entanto, é o caminho mais curto.
Matei a minha mãe
para que Sófocles urdisse a sua tragédia.
Devia escrever coisas mais divertidas,
entreter as massas.
Evitar, ao menos, cenas tristes,
mudar de roupa uma vez por mês.
Podia, decerto, afastar-me, sair do corpo,
dos seus humores.
Entrar na biopolítica, usar os seus métodos.
Engravidar uma ideia alegre.
Enfim, nada contra os suicidas de carreira
e os demais performers do além.
Não é que não me apeteça largar-te
num elétrico sem travões.
Deixar-te num país estrangeiro,
sem dinheiro e sem memória.
Não se iludam, ainda sei baixar as calças.
Fazer o truque.
Mas se o meu psiquiatra ler isto,
vai achar que o tratamento
já não funciona.
Pergunto-me se estou morta ou apenas ferida.
Se já tomei a droga.
Estará agora a fazer efeito?
Quero saber se estas sombras que nos cercam
não estão, no fundo, a cavar as nossas campas.
Olho à volta e os relógios perdem a voz.
O céu retira-se e desfalece nos cantos.
Apogeu do chão e do pequeno.
Trapalhaçada das lacraias.
O silêncio resigna-se
e adota um ar póstumo:
o antônimo de uma sala de partos.
*Poemas do livro “Nadar na Piscina dos Pequenos”, Assírio & Alvim, 2017.