María Pilar Jiménez Aleixandre, mais conhecida pelo apelido “Marilar” (Maria + Pilar), nasceu no dia 1º de maio de 1947, em Madrid, na Espanha. Poeta, escritora, tradutora e bióloga, venceu o Prêmio Nacional de Narrativa, em 2022. Membro de la Real Academia Gallega, é conhecida por suas atuações pela resistência clandestina contra a ditadura franquista e o ativismo a favor das pautas feministas.

por baixo das unhas

na noite antes de morreres
– ordens do médico –
com algodão
molhado em acetona
tirei da unha do teu dedo mindinho
o verniz cor-de-rosa

no ano antes de morreres
eu tinha vinte e cinco
estava tão ocupada
em não ser como tu
não criar sete filhos
tirar o verniz
de todas as unhas
escapar às amarras que estendem
as tigelas do café

na noite anterior    o verniz
no algodão
que o médico pudesse ver
o refluxo do sangue
por baixo das unhas
dos caracóis brancos
última maré esvaziando-se no coração

no ano anterior    um namorado
que não conhecias
(se o conhecesses devia desagradar-te)
cuidou da balbúrdia que zoava
nos meus caracóis
pintou-me na unha
do dedo mindinho
com um marcador negro
um coração

então não sabia
que o teu sangue coalhou
nessa terra que tenho por baixo das unhas
que a ti devia
os espinhos que brotavam    que
também trago por baixo das unhas
restos da tua tinta
que acabaria por usurpar o teu nome

não sabia que foste tu quem me educou
contra ti mesma   contra ti mesma

derrotas domésticas

deve ter sido muito difícil
degolar as enguias
sem cortar os dedos
desviar-te para que não te envolvessem
as escamas do besugo
fugir do nó corredio dos lençóis

nas noites opacas
que batalhas contra os grãos-de-bico
crescendo disformes na água    que absurda tarefa
separar as lentilhas do arroz
que impotência
quando o leite fervido vai por fora
inevitavelmente

e se a barafunda das frigideiras
não te deixava ouvir a música
se o teu francês e alemão
eram inúteis contra a gordura nos fogões
se os canos de água berram como crianças
ou gaivotas   e as batatas se pagam
ao fundo da panela

mãe
como é que estás a sorrir nas fotos?

num cutelo de sal

rachei a língua
num cutelo de sal

desordenaram-se os pronomes
o ene separou-se da vogal
e os tempos compostos
queimaram as asas     enxameando
na luz do farol

escaparam-me os cês
pela feria
e gastei algumas marés escutando
os que repetiam
se era possível falar
com a língua fendida     cantar
se a língua não mergulhara no leite

e no fim tanto faz
provar leite ou sangue
tomar com a língua suor    cuspo   sêmen
ou qualquer outro dos venenos
que vêm de dentro

o som dos venenos
.                                    Ou terei que trazer-te o som dos venenos?
.                                                                                          Sylvia Plath

Distinguir o sinal entre o tumulto
dos ruídos. Sobre o gume do cutelo
o pingo de veneno certifica
a harmonia dos sangues, a pertença
ao impenetrável círculo feroz.

Canta: tu podes. Tens na língua a marca
do cutelo ou da serra, a queimadura,
o coro dos venenos não dá trégua,
antes que a ordem imponha o seu silêncio
os venenos darão memória ao caos.

o labirinto do bambu

desconfia
do labirinto de bambu
hoje o caule enodado    amanhã barrote
da sua multidão de estacas

A criatura interpela o seu criador

por que me tiraste da lama
ou do matadouro?
por que diz-me    moldaste
o meu corpo      esta gaiola
se ias arrojar-me no quarto escuro?

quando cheguei aprendi
a língua das baratas o alfabeto
das aranhas pois como Cassandra
não sei viver sem falar
cresceram-me
os olhos para furar a treva
pus guelras para respirar
nesta humidade de fuligem
que antecipa os recantos
no bandulho do peixe

com o andar do tempo
consegui acostumar-me
a que as ratazanas brincassem no meu ventre
à noite
e que me acordassem lambendo-me a cara

se te desagrada o meu nariz
lembra-te que saiu da tua mão
puseste nele a maldição:
uma quarta por cada verdade

mas     se vais ameaçar os demais
não com ratazanas ou trevas
não com teias ou baratas
apenas com a minha companhia
se aos poucos      mudei no bicho-papão
melhor desfaz outra vez o meu corpo
use as pelangas para uma nova criatura
as estilhas para uma mesa
ou mete-me de cabeça
nesse forno de gás onde fui cozida

negociando poemas

estou a desafiar a memória
– dizes e tenho que dar-te razão –
podendo assegurar a realidade
não vais usar a memória

negociando    palavra a palavra
por cima da macela
inevitavelmente
algumas caem na tijela
dissolvem-se

memória mão esquerda
(metáfora roubada por alguém)
desenhos perfeitos    amor   cativar
e não risco não!
nem sequer serve comércio
ou compradores

armado de tesouras
mínimo X de cutelos
cortas ineXorável
uma palavra atrás da outra

.       armado da tua lenta
palavra tartamuda
(e sem embargo incontestável
quando     depois de fazê-las rolar
na língua     a deixas cair a pique
na macela ou no papel)

eu vou cosendo
com pontos desiguais
as palavras que sobreviveram
e risco desenhos perfeitos
porque consegues convencer-me
(ainda que tu mesmo dissesses
tenho que deformar as manchas
finas as linhas para que não
se confundam com sal de prata)

e depois de beber a meias
a macela ou o veneno
ainda resgato umas palavras empapadas
do fundo da tigela
para prendê-las no arame
num dia de vento

*Poemas do livro “Catálogo de Venenos”, Derivas Editores, 1999.