Myriam Fraga nasceu em Salvador, Bahia, no dia 9 de novembro de 1937. Poeta, escritora e jornalista, começou a publicar seus poemas em jornais e revistas no final da década de 1950. Colunista do jornal A Tarde (1984 – 2004) foi também a primeira diretora da Fundação Casa de Jorge Amado. Entre 1980 e 1986, esteve à frente de projetos pioneiros na Fundação Cultural do Estado da Bahia, quando coordenou a “Coleção dos Novos” e foi responsável pelo projeto de criação do Centro de Estudos de Literatura, hoje Departamento de Literatura. Eleita por unanimidade, foi membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Em 2015, tomou posse da vice-presidência da instituição. Myriam Fraga faleceu no dia 15 de fevereiro de 2016, em Salvador.
Os ancestrais
Meu avô, passadas mágoas,
Reisados de maravilha,
Sou teu neto ou teu pecado?
Nascido de velas livres,
Batizado no oceano,
Marcado com ferro em brasa.
Meu avô, meu marinheiro,
Galera real, gaivota,
Remo escrevendo na tarde,
Pergaminho que se arrasta,
Biografia ou astrolábio,
Minha rota ou meu naufrágio.
Nereida, tritão, sargaço,
Minha origem foi um mapa,
Minha infância uma rosácea
De sal. Meu destino o cais.
Repetição de paisagem
Quase
ilha de sal.
Medusa calcificada
Sua encosta salgada.
Seu lento escorrer-se
Em preamar,
Seu corpo de anêmona,
Ruas azuis correndo
Como rios,
Seus filtros ácidos
E a pupila contráctil
À luz que cega.
Seu verão de sargaços.
O dia
Ferocidade azul
Entre lâminas
Cintila.
Poliedro de luz e
Cristal nos rochedos
Do mar.
Inocência de garras,
Em rubra pele
Se desdobra e
Salta.
Leopardo entre
Estátuas.
Enterrada no cachaço
Uma espada de salgema.
E a noite
Dorme
O seu sono de pássaro
Cansado.
Imóvel perfeição
De ave marinha,
Sereníssima e exata.
Sepultada em silêncio,
Dorme
O seu sono de âncora
Esquecida.
E o vento-galileu,
Caminheiro das águas,
Apascenta um rebanho
De líquidas ovelhas.
Carta a el-rei
“Senhor eu hei trazido a meu encargo
As armas, de vossa magestade
A esta província do Brasil”
E se assim venci, por vós, tão grande empresa,
Por adversa e difícil, vos entrego
O galardão e a luz da minha espada.
Nem desejo alcançar mercê de glória.
Se assim venceu a Cruz mais este fado.
Só de servir me tenho por premiado.
O medo
O medo,
O medo como um pássaro
Calado,
Como uma máscara de vidro
Sobre a face.
O pressentido deslizar
As velas VELAS
As nadadeiras de ágata
A tessitura de espuma
E o branco traço,
Risco de seta à beira do oceano.
O medo (digo)
Aquele medo
Como um menino doente
No regaço.
E as nadadeiras brancas
VELAS VELAS
Um cardume feroz de peixes cegos.
*Poemas do livro “Sesmaria”, Edições Macunaíma, 2000.