Louise Elisabeth Glück nasceu em Nova Iorque, a 22 de abri de 1943. Prêmio Nobel de Literatura em 2020, tem uma obra constituída por 12 livros de poemas, além de dois volumes de ensaios. Também foi contemplada com a “Medalha Nacional de Humanidades”, o “Pulitzer”,  o “Prêmio Nacional do Livro”, entre outras grandes honrarias.

Com linguagem límpida e direta, Glück apresenta uma poética marcada pela profundidade filosófica, utilizando elementos da mitologia e da psicanálise, para abordar temas sobre a solidão, a melancolia e o luto. Ao mesmo tempo misteriosa e reveladora, seus poemas muitas vezes apresentam narrativas simples e direta, mas ao mesmo tempo carregada de significados. No Brasil, a poeta Ana Cristina Cesar, foi uma de suas grandes admiradoras.

Louise Glück morreu em 13 de outubro de 2023, aos 80 anos, em Cambridge, EUA.

Telescópio

Há um momento depois que você afasta o olho
em que você esquece onde está
porque viveu por um tempo, parece,
em algum outro lugar, no silêncio do céu noturno.

Você deixou de estar aqui no mundo.
Está num lugar diferente,
um lugar onde a vida humana não significa nada.

Você não é uma criatura em um corpo.
Você existe como as estrelas existem,
participando de sua imobilidade, sua imensidão.

Depois você está outra vez no mundo.
À noite, na colina gelada,
desmontando o telescópio.

Você se dá conta mais tarde
não de que a imagem é falsa
mas de que a relação é falsa.

Você vê outra vez a que distância
está cada coisa de cada outra coisa.

Fragmento arcaico

Eu estava tentando amar a matéria.
Colei um aviso no espelho:
É impossível odiar a matéria e amar a forma.

Era um dia lindo, mas frio.
Isso, para mim, era um gesto extravagantemente
emotivo.

…….. seu poema:
tentei, mas não consegui.

Colei um aviso por cima do primeiro aviso:
Chore, soluce, se debata, rasgue as roupas

Lista de coisas para amar:
poeira, comida, conchas, cabelo humano.

……..disse
exagero de mau gosto, Então eu

rasguei os avisos.

AIAIAIAI chorou
o espelho nu.

A estrela da tarde

Esta noite, pela primeira vez em muitos anos,
me apareceu de novo
uma visão do esplendor da terra:

no céu de fim de tarde
a primeira estrela parecia
ficar mais brilhante
à medida que a terra escurecia

até que afinal ela não pôde escurecer mais.
E a luz, que era a luz da morte,
parecia restituir à terra

seu poder de consolar. Não havia
outras estrelas. Só aquela única
cujo nome eu sabia

já que na minha outra vida
eu a ferira: Vênus,
estrela do início da noite,

a você eu dedico
minha visão, já que nessa área em branco
você projetou luz suficiente
para tomar meu pensamento
outra vez visível.

O passado

Súbito uma luz fraca surge
no céu entre dois
galhos de pinheiro com suas pontas fininhas

gravadas na superfície radiante
e em cima o
imenso céu de algodão –

Sinta o cheiro. Cheiro de pinheiro
ainda mais intenso quando o vento
o atravessa e produz um sonho estranho,
feito sopro de vento num filme –

As sombras se movem. As cordas
fazem som de cordas. Isso que você ouve agora
deve ser o som do rouxinol, chordata,
o pássaro macho corteja a fêmea –

As cordas se mexem. A rede
balança com o vento, amarrada
firme entre os dois pinheiros.

Sinta o cheiro. Cheiro de pinheiro.

É a voz da minha mãe que você está ouvindo
ou será apenas o som que fazem as árvores
quando o ar atravessa –

afinal, qual som ele faria
atravessando o vazio?

Folhas na fogueira

As folhas secas logo pegam fogo.
E logo se inflamam: num instante,
de algo passam a nada.

Meio-dia. Céu refrigerado, azul;
sob o fogo, terra cinzenta.

Veloz o fim, veloz a fumaça se dissipa.
E onde havia o amontoado de folhas,
um vazio que de súbito parece vastidão.

Da estrada, um menino observa.
Lá permanece, assistindo à queima das folhas.
Talvez assim saiba quando a terra se extinguir –
ele se incendiará.

Caçadores

Noite profunda – as ruas pertencem aos gatos.
Aos gatos e às pequenas criaturas de que são predadores –
Os gatos são ágeis como seus ancestrais nas colinas
e tão esfomeados quanto seus antepassados.

Lua nova. Assim, noite fria –
pouca lua não aquece a noite. O verão se anuncia
mas ainda há muitas presas à espera,
apesar dos ratos silenciosos, vigilantes feito gatos.

Fareje 0 ar – noite calma, noite para o amor.
E de tempos em tempos ouve-se
um grito vindo da rua de baixo
onde um gato crava os dentes na pata do rato.

Depois do grito, o rato está morto. Esse grito é como um mapa:
aos gato, circunscreve a garganta da presa. Em seguida,
o próximo grito é de um cadáver.

Sorte de quem vive uma paixão em noites como essa,
quente o bastante para deitar o corpo nu sobre os lençóis,
transpirando, porque é árduo esse amor, doa a quem doer.

Cadáveres de ratos jazem nas ruas, abandonados pelos gatos.
Sorte a sua não estar na rua nessa hora,
antes da chegada dos garis com suas vassouras. Ao nascer, o sol
não ficará desapontado com o mundo ao defrontá-lo,
as ruas estarão limpas para o dia que começa e a noite que o seguirá.

Sorte a sua por já estar na cama,
onde os gritos de amor abalam os gritos dos cadáveres.

Um pedaço de papel

Hoje fui a um consultório médico –
a médica disse que eu estava morrendo,
não com essas palavras, mas quando as pronunciei
ela não teve como negar –

O que você fez com seu corpo, pergunta o silêncio dela.
Nós o confiamos a você e veja só o que fez,
você abusou.
Não estou falando só do cigarro, diz ela,
mas da alimentação, da bebida.

É uma mulher jovem; o casaco branco e rijo disfarça o corpo.
Os cabelos presos para trás, os cachinhos esmagados
num elástico preto. Ela não está à vontade,

sentada à mesa, o diploma sobre a cabeça,
lê uma lista de números organizados em colunas,
alguns sinalizados com cuidado.
As costas também estão aprumadas, sem demonstrar emoção.

Ninguém me ensinou a cuidar do meu corpo.
Nascemos sob as vistas de mães e avós.
Ao nos vermos livres delas, a esposa entra em ação, mas ela é nervosa,
ela não persevera. Então esse corpo que é meu,
pelo qual a médica me culpa – sempre foi controlado por mulheres,
e, quer saber de uma coisa, elas deixaram muito a desejar.

A médica olha para mim –
entre nós há uma pilha de livros e pastas,
À exceção de nós, o consultório está vazio.

Há um alçapão aqui, e do outro lado da porta
está o reino dos mortos. E os vivos forçam sua passagem,
querem que você vá primeiro, antes deles.

A médica sabe disso. Ela com seus livros,
eu com meus cigarros. Enfim
faz uma anotação num pedaço de papel.
Isso vai ajudar na sua pressão arterial, diz ela.

Guardo no bolso, um sinal de partida.
E assim que saio, rasgo o papel, esse bilhete para o outro mundo.

Ela é louca de ter vindo parar aqui,
um lugar onde não conhece ninguém.
É sozinha: não usa aliança de casamento.
Volta sozinha para casa, seu recanto fora do povoado.
E toma uma taça de vinha por dia,
na hora do jantar que não é bem um jantar.

Então tira o casaco branco:
entre o casaco e seu corpo,
só uma leve camada de algodão.
E a certa altura, nem isso.

Para nascer, todo corpo faz um pacto com a morte
e a partir daí, é só trapaça atrás de trapaça –

Você vai dormir sozinha. Talvez durma, talvez nunca mais acorde.
Mas durante um longo tempo consegue ouvir cada som.
É uma noite costumeira de verão; nunca escurece.

Violetas

Porque em nosso mundo
alguma coisa sempre escondida,
pequena e branca,
pequena e o que chamas
pura, não lamentamos
como lamentas, caro
mestre sofredor; tu
não está mais perdido
do que nós, sob
o pilriteiro, o pilriteiro que sustenta
harmônicas bandejas de pérolas: o que
te trouxe entre nós
que te ensinaríamos, embora
ajoelhes e chores,
juntando tuas grandes mãos,
em toda a tua grandeza nada
sabendo da natureza da alma,
que nunca há de morrer: pobre deus triste,
ou nunca tiveste uma
ou nunca perdeste uma.

*Poemas do livro “Louise Glück – Poemas (2006 – 2014)”, Companhia das Letras, 2021.
Tradução de Bruna Beber, Heloísa John e Marília Garcia.