Adalgisa Maria Feliciana Noel Cancela Ferreira, nasceu no Rio de Janeiro, em 29 de outubro de 1905. Poeta e jornalista, foi uma importante voz feminina na poesia brasileira, fazendo parte das gerações modernistas do país. Com apenas 16 anos casou-se com o pintor Ismael Nery, de quem adotou o sobrenome, e teve dois filhos.  Após a morte do marido, em 1934, passou a trabalhar em jornais e também iniciou carreira política, sendo eleita deputada por três vezes, no entanto, acabou cassada em 1969. A partir da década 70 passou a apresentar fortes traços de depressão, isolou-se das pessoas, ficou pobre e viveu de favor na casa do amigo Flávio Cavalcanti, um dos mais importantes comunicadores da época, em Petrópolis, região serrana do Rio.

Em relação à sua obra literária, a maior parte de seus escritos aconteceram entre as décadas de 30 e 50. Nesse período, mostrava um pensar profundo sobre as questões da vida e da morte, o ser mulher, e as relações com Deus, num campo lúdico, filosófico e extremamente sentimental. Em 1977, sofreu um acidente vascular cerebral e ficou afásica e hemiplégica. Faleceu em 07 de junho de 1980, no Rio de Janeiro.

EVOLUÇÃO

Depois da vida outras mortes viverão
Trazendo o pólen dos silêncios insepultos
Nos ventos desatados pelos prantos.
Depois do amor outros cansaços se levantarão
Marcando as carnes gretadas pelo tédio
Na aparência de satisfação.
Depois da virgindade outros mercados surgirão
Vendendo os corpos fecundados
Sob o prazer, o asco e a exaustão.
Depois dos túmulos ficará o pó dos ossos
Cobrindo as imagens mutiladas
Pela consciência insone dos enfermos.
Depois da colheita outros frutos apodrecerão.
Outros rebanhos fugirão das pestes
E novas águas brotarão do solo novo
Removendo os universos tombados.
Depois do sono agitado da memória
Outras lembranças vestirão outros sentidos
Com o manto insistente do remorso
E com a palavra fatal da solidão.
Depois da invasão da alma outros massacres se repetirão
Em destinos de sangue e maldição
Cultivados em rancores dormidos,
Depois da morte outras vidas surgirão
Carregando consciências em angústia
Corpos de amores saturados
Olhos vazados em dores ancestrais
Vencendo os múltiplos limites do tempo
Que levam aos abismos das mortes reais,
Depois do vácuo
Outras vidas mortas nascerão.

GUERREIRA

No espaço que tem a medida do eterno
Despojei o meu corpo de todas as reservas humanas
E joguei a minha alma
Na vala comum do Universo.
Dei meu cantos às sombras dispersas
E o meu pranto à terra morta.
Ladeei risos, rolei montanhas,
Mutilei-me no acre silêncio
E anulei as graduações do meu pensamento,
Enxotei o espectro da minha curiosidade
Na vida dos meus sentidos,
Interceptei aos meus ouvidos
O regresso da minha própria voz,
Levei o meu raciocínio
Ao abismo tenebroso do ceticismo
E afoguei o meu espírito
No volume surdo das sufocações sem causa.
Contemplo agora a minha dissecação,
A nudez da minha vontade inerte,
A chaga profunda nas carnes dos meus sonhos
E a dolorosa morte sem continuidade
Que pisa lentamente as minhas frágeis recordações.
Descarnada e decomposta,
Largada no despudor
Pronta estou
Para prostituir-me com todos os acontecimentos.

PENSAMENTO

Com o cansaço frio e a dor mansa
Tenho nos olhos uma solidão crescente
Há um som de palavras na distância
Dando à vida uma treva permanente.
Escondo-me da paisagem existente,
Das horas gravadas na memória,
Penso às vezes que sou forma ilusória
Arrastando esta alma tão doente.
E concentrada em medos e horrores
Deu ao pensamento outra distância
Sob as lágrimas do pranto que ainda posso.
É que dentro de todos os destinos
Aturdida por dores diferente
Sou aquela que agora é pó e ossos
Sobre tudo que fui antigamente.

A IMPRECAVIDA

Contemplei a véspera da minha vida
E não fixei o mistério que rondava diante o amor
Envolto na túnica da morte.
Meditei sobre as distâncias
E não senti o tempo recolhendo
Meus ímpetos selvagens
E as palavras sem definição.
Olhei as rosas em botão
Mas esqueci de preparar a memória
Para o instante supremo e justo
Do seu perfume.
Aceitei a alegria da liberdade
Sem pensar nos grilhões da minha concepção.
Desejei o universo
Sem prever a luz mágica do destino
Que me devolveria ao desespero.
Procurei as multidões
Sem saber que mergulhava na mais densa das solidões.

ACALANTO

Oh se a vaga música
Ouvida no pensamento caído
Consolar pudesse
A nostalgia do gesto perdido,
Se o tremor dessa canção sutil
Despertasse o olhar às paisagens
Sem que passar pudesse
A lamentação das velhas imagens,
Se ao menos essa cantiga distante
Que mata a palavra sugada
Pelo tédio e a solidão
Ao corpo deixasse
O silêncio sem dimensão,
Eu diria que o meu destino
É rio calmo e sereno
Contornando sem segredos
Um frágil e pequeno.

POEMA UNIVERSAL

Esse poema é dos que são estranhos a si mesmos,
É dos que nunca sentiram o frescor das rosas orvalhadas,
É dos que nunca mancharam sua memória na vibração das cores e das luzes.
Esse poema pertence aos que esmagaram a lágrima com a humildade,
É dos que nunca traçaram a forma de um carinho no seu coração,
É dos que jamais repousaram a fronte exausta e perseguida,
É dos que assistiram à ação da morte num corpo muito amado,
É dos que banharam noite e dia a alma no pranto,
É dos que sentiram seus movimentos germinaram no crepúsculo
E nas sombras do isolamento.
Este poema é dos que sofreram na amarga sujeira das prisões,
Vem das mulheres desgraçadas e das crianças famintas
Companheiras dos cães que farejam as migalhas.
E dos homens que ouviram longo tempo as vozes do ideal
E depois as da maldição do sofrimento e do fracasso.
Este é o poema dos que jamais puderam caminhar,
Dos que nunca sentiram a doçura do orvalho das manhãs,
Dos que passaram a vida imóveis
Mas que nunca puderam repousar.
Este poema sereno como a oração do condenado arrependido
É meu e também
É teu.

DEUS ME PEDE EMPRESTADA

Envolvo-me em nuvens,
Subo com os ventos,
Risco o céu com a luz da minha cabeleira,
Derreto-me nos mares, chego a todas as praias
E abraço todos os povos dia e noite.
Estico minha perna para salvar o náufrago
Aqueço entre os meus seios o filho abandonado
E santifico a humilhação da prostituta.
Acomodo o prisioneiro da culpa,
Pela morte levo os homens à vida,
Pelo meu sexo levo-os a Deus,
Glorifico o crente e o ateu,
Choro vendo o recém-nascido,
E serena me alegro com a morte do cristão.
Subo pelos raios de sol
Aos cumes nunca pisados
E toco a pedra que ainda não é fonte.
Empresto meu corpo a Deus
Para que através dos meus olhos
O Seu olhar de doçura e amor
Me escorra pelas nuvens,
Pelos montes, pelo prados,
Pelas fontes, pelos rios,
Pelos mares e pelos homens.

METAMORFOSE

No combate entre o gelo e o fogo
A vida universal desdobra-se em ciclos
No espaço de mil séculos.
Tomamos consciência do cósmico,
Tentamos ligações com o espírito há muito abatido
E a alma afunda em dimensões pulverizadas.
Dá-se a recuperação das espécie rejeitadas,
O achado do perdido não procurado.
Do implacável e do flamejante
O universo não está terminado.
Há mutações silenciosas em cada instante que soçobra
E que só percebemos de mil em mil séculos.

Somos casulos pendurados nas folhas das árvores sem nome,
Casulos à espera da metamorfose cíclica do tempo.

*Poemas do livro “DO FIM AO PRINCÍPIO – Poesia completa Adalgisa Nery”, Editora José Olympio, 2022.