Moacir Aparecido Amâncio nasceu na cidade de Pinhal, São Paulo, em 1949. Jornalista, ensaísta, poeta, professor e doutor em Língua Hebraica e Literatura Judaica da Universidade de São Paulo, iniciou sua trajetória literária na década de 70, publicando contos e novelas experimentais e só mais tarde passou a se dedicar à poesia. Em 1993 vence o Prêmio Jabuti com o livro de poemas “Do objeto útil”.

CORNUCÓPIA

Se o grão de sal
resistiu ao oceano,
sobra em resumo
o búzio que se sopra.
Discreta jóia,
jamais expele o sono
nem assanha paraísos,
apenas coloca, se tanto,

o crespo de uma vírgula.

CARTOGRAFIA

O caracol, seu trajeto,
de nenhum para nenhum,
apenas dentro do abismo.

Solicitas rosas dobram
o cantar de tons vermelhos
em cascata para o negro.

O terreno dele, avaro,
não vermelha sob as rosas,
pequenos sóis vegetais.

Enquanto ele vai, desliza
como se permanecesse
neste tom de azul, o triz.

JOGO

Caos contrário
não é acaso
de dado solto
na mesa espaço.

Soma certezas
do labirinto
olhar um dado,
multiplicá-lo.

Se rola solta,
a conta faz
o rito próprio
e pelo exato

louca celebra
todo o inexato,
luz que mostra
total um círculo.

Porém esfera,
mas imperfeita.
Profusos furos,
quer-se quadrada

com oitos lados.

DO OBJETO ÚTIL

O estar sentado define a cadeira, o cão
ao fugir nada explica por tabela.
Fica no ar o seu eco além da palavra e da
palavra cão, ao alcance da lua. Círculo em
redor do qual o latido é um pássaro.
Há sempre um sentido montado contra a vontade
da árvore. A palavra dado na garganta;
o cão ao latir se cala.

A DECIFRAÇÃO DAS RUAS

A decifração das ruas com seus símbolos perfeitos e indiferentes
não apressa os meus passos; até porque não sou eu
quem na verdade caminha.
Os pés se enganam no falso do movimento, além de ignorar
sinais
no riso daqueles bichos.
Passam peixes e o vento cavalgado por um grifo.
Nós ficamos, vai o resto.
Também vem no ritmo de água, todos os conteúdos
para os quais não há
segredo.
Ela, a própria rua navega e nos decifra.
Éramos bem mais visíveis.

NOTÍCIA DE OUTONO, 1987, JERUSALÉM

O poeta está morto
e no entanto eu me levanto às seis e trinta da manhã
porque é hora.
O sol do fim de verão não perde o tempo,
as folhas ainda brilham carregadas de frutos da noite rapidamente
comidos pelo vento.
O poeta está morto e eu leio o jornal onde anunciam
sua morte.
Cirrose?
Coração?
Tristeza?
Alguns morrem de alegria.
Foi o câncer? Um golpe de ar? Cansaço?
Diante do jornal tomo a xícara de café, pronto para o dia.
O dia também é uma fatalidade.
Imagine, o poeta está morto apesar do barulho das crianças.
Elas brigam, brincam, gritam, pouco importa,
o entusiasmo é o mesmo.
Assim como é a mesma a rotina desta manhã –
ou não seria rotina –
embora nela se estenda a sombra do poeta morto.
Morto, imóvel, impassível feito qualquer morto,
apesar do silêncio dos velhos,
apesar do riso sem-vergonha dos velhos.
Pregões pintando o ar.
Frutas, verduras, brinquedos.
Sempre se arranja algo pra vender que a vida urge.
O leite dos filhos nunca espera. A operação da
mulher, o carro,
a passagem de ônibus, o bilhete de loteria,
a camisa nova. A camisa nova.
Tudo pela hora da morte.
Ah, a morte pública do poeta.
Um automóvel, outro, mais outro, parece um rio.
Olhares bailam em saltos fluídos.
Ninguém anuncia o apocalipse.

*Poema do livro “ATA”, Editora Record, 2007.