Henrique George Mautner, mais conhecido pelo nome artístico Jorge Mautner, nasceu no Rio de Janeiro, em 17 de janeiro de 1941. Poeta, escritor, cantor, compositor e músico violinista, é um dos mais importantes personagens da cena cultural brasileira das décadas de luta contra a ditadura militar. Venceu o Prêmio Jabuti de Literatura em  1962, com o livro “Deus da chuva e da morte”. Em 2003, o seu disco “Eu não peço desculpa”, em parceria com Caetano Veloso, venceu o Grammy Latino de melhor álbum de MPB. Também recebeu a Grã-Cruz da Ciência e da Cultura da Áustria. 

Filho de Anna Illichi, de origem iugoslava e católica, e de Paul Mautner, judeu austríaco, Jorge Mautner nasceu pouco tempo depois de seus pais desembarcarem no Brasil, refugidos do Holocausto.  A poesia foi a primeira forma de expressão do artística, tendo publicado o primeiro livro aos 15 anos, “Deus da chuva e da morte”. Esta obra compõe, junto com Kaos (1964) e Narciso em tarde cinza (1966), a trilogia hoje conhecida como Mitologia do Kaos.

Após o golpe militar de 1964 Jorge Mautner foi preso. É liberado, sob a condição de se expressar mais “cuidadosamente”. Em 1966, vai para os Estados Unidos, onde trabalha na UNESCO. Lá também atua na tradução de livros brasileiros. Em 1970, vai para Londres, onde se aproxima de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Volta ao Brasil e começa a escrever no jornal O Pasquim. Em 10 de dezembro de 1973, no período mais duro da ditadura militar, participa do Banquete dos Mendigos, show-manifesto idealizado e dirigido por Jards Macalé, em comemoração dos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O evento acontece no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, transformado em “território livre”, e resulta em álbum duplo gravado ao vivo. O disco foi proibido durante seis anos pelo regime militar e liberado somente em 1979. Em 1987 lança, com Gilberto Gil, o movimento “Figa Brasil” no show O Poeta e o Esfomeado, ligado ao movimento Kaos, voltado à discussão da cultura brasileira.

Olhos de raposa

Olhar pra mim de frente
você não ousa.
Olhar pra mim de frente
você não ousa.

Teus olhos, meu amor,
são olhos de raposa.
Teus olhos, meu amor,
são olhos de raposa.

Olhos de quem caça
e às vezes foge do caçador.
Olhos de quem caça
e às vezes foge do caçador.

É o animal que me abraça
é o animal que me beijou.

O relógio quebrou

O relógio quebrou
e o ponteiro parou
em cima da meia-noite
em cima do meio-dia.

Tanto faz porque depois de um vem o dois,
e vem o três e vem o quatro e eu fico olhando o rato
saindo do buraco do meu quarto.

E você de bonezinho pro lado
Fazendo cena de cinema e cena de teatro
com seu charme de Greta Garbo
e jeitinho de baby hippie,
fico todo alucinado.
Sacou o meu recado?

Anjo infernal

Eu queria um dia
te pegar pela mão,
te levar pra uma festa
sensacional
pra todo mundo me perguntar
quem é
quem é
quem é
quem é
este anjo infernal.

E depois da festa
você dançaria
na manhã sangrenta
em frente ao mar,
com seu chapeuzinho vermelho
a cobrir seu lindo cabelo
até o sono te desmaiar.

Mas eu já nem sei
como é que pode
nem como é que eu sinto
nem como é que veio
tanto amor

Pra mim você caiu do céu
numa grossa chuva de mel
e num disco voador.

Mas você é mesmo
coisa de um mundo que entre nós
nós, nós, nós, nós
ainda não surgiu.
Pedaço de estrela cadente,
presença do Oriente
na paisagem do Brasil.

Quando eu ouço bem à noite
as estrelas nos meus ouvidos
a murmurar
vejo você na minha frente
e é sem motivo,
e é de repente
que eu começo a chorar.

SuperMulher

Olha, ela canta, grita e zanza,
ela tem aquela transa
que eu não digo com quem é.
Ela tem o rebolado,
tem o corpo tatuado
de um figa da Guiné.

Ela tem uma coleção
de animais bem perigosos,
de animais muito orgulhosos
lá da Arca de Noé.
Ela tem uma pantera
que ela arrasta na coleira,
ela gosta dessa fera
pois é grande feiticeira
e seduz os corações.

SuperMulher,
SuperMulher,
é de capa voadora
domadora de leões.

Iº Fragmento!!!!

As cicatrizes
são como
raízes. Marcas
do Real.
Atrizes de
um teatro
universal.

*
Muitas vezes de dia
ou à noite
vejo alguém que já se foi embora para sempre
mas eu o vejo ao meu lado
como se fosse um anjo alado
e nós conversamos como sempre fizemos
e discutimos
com paixão
sobre detalhes
de opiniões
até concluir
que tudo são círculos
dentro de um quadrado.

*Poemas do livro “Kaos Total”, Companhia das Letras, 2016.