Julieta Barbara Guerrini nasceu em Piracicaba, interior de São Paulo, em 1908. Foi casada com o poeta Oswald de Andrade e fez parte do grupo da Semana de 22, marco do modernismo brasileiro. Além de poeta, foi pintora e escreveu crônicas para o jornal carioca “A Manhã”, em 1941. Seu único livro, Dia garimpo, foi publicado originalmente em 1939 e nunca mais teve outra edição. A publicação trazia desenhos da própria autora, um retrato dela feito por Flávio de Carvalho e uma carta-prefácio de Raul Bopp.

Poesia

Poesia
É compreender pelos cincos sentidos humildes
Não ficar nunca na lógica formal
Nunca
Preso ao número de palavras
Que devem compor um pensamento
Nem mesmo ao sentido das palavras
É compreender-lhes a essência
Que varia sempre
Varia conforme a luz
Conforme o ambiente
Conforme a boca que a pronuncia
Poesia é compreender pelos cincos sentidos humildes
E não exige cátedra
Porque há os que compreendem
Sem nunca terem visto nem ouvido
Como são os que têm fé
Sem nunca terem visto
Nem ouvido
Poesia não é vaidade
Poesia não é sabedoria
Nem erudição
Nem gramática
Nem a riqueza da língua
Poesia é outra coisa
Dentro e fora dos cinco sentidos
Humilde
Não levando nenhum vocabulário
Codificado
Como chave da emoção
Do entendimento
É estar sempre pura como se nasceu
Abrir os olhos de recém-nascido
Fora de toda dúvida
Fora de toda certeza
Como água do rio
Refletindo
Passando no espetáculo
Sem acumular nenhum cabedal de experiência
Transparente e livre
Poesia é a humilde surpresa
Não tem nenhuma vontade
De acertar
Não quer ter gênio
Não quer doutrinar
Sem saber o que é bom
Sem saber o que é ruim
Descer ao fundo do mar sem escafandro
Gostando dos peixes que não entendem nada
Descer ao fundo da multidão
Gostando das crianças que não entendem nada
Subir ao fundo da multidão
Gostando dos adultos
Que não entendem tudo
Ir refletindo tudo na sua carne como se fosse água
Ser como vidro molhado que o sol atravessa

Amar

Na apagada frescura da tarde
Minha felicidade se atira
Do sétimo andar

Nenhuma ânsia de aventura
Faz cupim na minha vida

Que mais eu quero
Já moro
Já tenho casa
Já tenho mar

Quanta vida de estribo de bonde
Passa lá fora
Desassossegando
A dignidade
De quem tem casa
De quem tem mar

Pudessem todos que eu vejo agora
Da cidade e do morro
Na apagada frescura da tarde
Sossegar

Dizer comigo
Que mais eu quero
Já moro
Já tenho casa
Já tenho mar

O dragão

Na viagem da saudade
Quando não é mais dia
Quando ainda não é noite
Saudade da noite
Saudade do dia
Querendo o dia
Querendo a noite
Sabendo que a noite existe
Que o dia existe
Que as noites
E os dias
Se acabam

O trem passou na viagem da saudade
Triturando nas engrenagens
A paixão

Fazia tanto barulho
Soprava pelas ventas
Como o dragão de Siegfried
Mas todos nós estamos habituados
Com o Brasil a vapor

As mulheres escoradas da linha da saudade
Das casas de pau a pique
De costas pela estradas
Sem olhar
Os campos
A terra – o céu – a amplidão
De mão na cintura
A outra mão estirada
Esquecidas
Repousantes de não ter nada

As rodas do trem mastigavam a paixão
Na linha da saudade
Quando já não é mais dia
Quando ainda não é noite
Saudade da noite
Saudade do dia
Querendo o dia
Querendo a noite
Sabendo que a noite existe
Que o dia existe
Que as noites terminam nos dias
Que os dias nas noites terminam

Os vaga-lumes riscam os brejos verdes
Os grilos
E os sapos
Suspiram como liras

Tudo ficou dor de cinza
Cheia de escuridão
Cheia de claridade
Na viagem do Dragão

Mãe gentil

O rio sem barrancos
O céu além do espaço
Os horizontes circulares
O meio-dia
Copulavam dentro dela
Faminta exuberância de todos os dias
Rebrotava-a
Cor de rosa de sertão por dentro
Como um sapo estercado
No coro poente das ave-marias
Do eco do abismo hermafrodita
Beijando-lhe as mansas feridas
Como se fossem pombas madonas
Como se fossem o arco-íris
As borboletas
As borboletas do Brasil
Mãe gentil
Sopravam o vidro vegetal
A barriga bojuda do rio sem margem
Extravasava nela a saciedade dos instintos
Sobre duas estacas tortas
Que mais pareciam
O filho de Deus sobre as ondas
Andrajo arrebol
A terra gestando
E outro no braço
E outro filho na mão
E outros muitos fechados nas covas
E quantos quisesse
No sexo caudaloso do seu homem
Com o rio enfunado do Brasil sem margem
Com as tempestades do Brasil que enterram o céu no chão
Com o pôr do sol pau Brasil
Com a floresta do Brasil
Que come a terra do Brasil
Ela copulava
Sapo estercado
Nas fauces da exuberância
Vida montanha no avesso da morte
Por isso que os seus olhos eram tracoma.
Eram cuspo sem fundo
Eram as furnas do jaguar
Nisso a tarde parava
As borboletas do Brasil
Mãe gentil
Vinham coroar-lhe as feridas mansas
Pousar-lhe na papeira
Como se fossem madonas
Como se fossem arco-íris
Como se fossem pombas

Natal

Aleulia!
Hosana!
Bimbalhem sinos,
Nasceu um Homem!
Meu choro clama
Meus lábio sugam
Humanidade, já vos pertenço
Sou um dos vossos!
Onde a estrela que vos guia até meu berço
Tragam-me votos,
O ouro do vosso afeto
Sou a vida e a esperança
Que lugar me reservaste?
Serei um Homem?

São Jorge, o Santo

Calorado o cavalo branco
S. Jorge o Santo
Santo Guerreiro
A lança lança
Sobre o Dragão

Um monstro vivo é belo como a morte
Andrômeda sobre o rochedo espera salvação

Na via da claridade da lua
No negro da escuridão
S. Jorge o Santo
Santo Guerreiro
Vai sozinho no seu cavalo
Morto o dragão

Poema 1

Vida fluindo
No seu encalço,
O tempo urdindo
Buracos negros
Grandes espaços
Vida no avesso
Sem endereço
Do consumido
Ao consumado
Vida fruindo
Vida vivendo
Vivendo a vida
Em queda livre
Não sinto peso
O céu é o espaço
Não tenho medo
No corpo a corpo do nosso abraço,
Usufruindo-a, a qualquer preço
Usufruída, deixo pedaços
Vou me assistindo
Como a um palhaço
Chorando ou rindo
Sem ter a emenda
Desta prebenda.

*Poemas do livro “Dia Garimpo”, Círculo de Fogo, 2022.