Yves Bonnefoy nasceu em Tours, Indre-et-Loire, na França, a 24 de junho de 1923. Ligado inicialmente ao surrealismo (movimento que abandonou em 1947) tornou-se um dos mais importantes poetas franceses do pós-modernismo, a partir da segunda metade do século XX. Foi também ensaísta e tradutor de obras clássicas de William Shakespeare, além de poemas de W.B Yeats, John Donne e Giacomo Leopardi. Escritor prolífero, publicou diversos livros que abordam, sobretudo, percepções sobre a relação do mundo com a representação poética. A partir disso, filia-se ao existencialismo de Jean Wahl, de quem foi aluno. Yves Bonnefoy faleceu em Paris, no dia 1º de julho de 2016, aos 93 anos.
ARTE POÉTICA
Rosto que se apartou dos seus ramos primeiros,
Beleza toda alarme por céu baixo,
Em que lareira erguer o fogo de teu rosto
Ó Mênade tomada e atirada abaixo?
CORPO VERDADEIRO
Fechada a boca e já lavado o rosto,
Purificado corpo, e sepultado
Esse fado a luzir sobre a terra do verbo,
E o casamento mais rasteiro foi selado.
Calada a voz que me gritava à face
Que errávamos a esmo e separados,
Murados esses olhos; tenho Douve morta
Na aspereza de si comigo enclausurada.
E por maior o frio que sobe do teu ser,
Por mais ardente o gelo em nossa intimidade,
Douve, eu falo em ti; e assim te encerro
No ato de conhecer e nomear.
VERDADEIRO NOME
Eu chamarei deserto ao castelo que foste,
Noite a essa voz, ausência ao teu semblante,
E ao caíres um dia nessa terra estéril
Eu chamarei de nada o raio teu raptor.
Morrer é um país de que gostavas. Venho
Mas pela eternidade em teus negros caminhos.
Destruo o teu desejo, a forma e a memória,
Eu sou teu inimigo e não terei piedade.
Eu te chamarei guerra guerra e tomarei
Contigo as liberdades da guerra e terei
Nas mãos esse teu rosto escuro e trespassado,
No meu peito o país que em tempestade luz.
A luz profunda necessita pra surgir
De uma terra talada e a arrebentar de noite.
De lenha tenebrosa é que a chama se exalta.
Mesmo para a palavra é preciso matéria,
Uma inerte ribeira além de todo canto.
Tens de passar a morte por que vivas,
A mais pura presença é sangue derramado.
TEATRO
I
Eu te via correndo nos terraços,
Eu te via lutando contra o vento,
Sangrava o frio nos teus lábios.
Eu te vi romper-te e gozar de estar morta ó mais bela
Do que o raio, quando mancha as vidraças brancas com teu sangue.
LUGAR DOS MORTOS
Lugar dos mortos
É a dobra quem sabe do pano vermelho.
Eles caem talvez
Em suas mãos pedrentas; talvez se agravem
Pelos tufos no mar de cor vermelha;
Teriam como espelho
O corpo gris da jovem cega, têm por fome
No gorjeio das aves as mãos de afogada.
Ou então reunidos sob o sicômoro ou o bordo?
Ruído algum perturba já sua assembleia.
A deusa se mantém no topo da árvore,
Inclina para eles a jarra de ouro.
E às vezes brilha só o braço divino na árvore
E pássaros se calam, outros pássaros.
UMA PEDRA
Fui bastante bela.
É possível que um dia como este me assemelhe.
Mas a urze supera o meu semblante,
A pedra oprime o meu corpo.
Chega-te a mim,
Escrava vertical raiada de negro,
E o teu semblante corre.
Derrama o leite tenebroso, que exalta
A minha força simples.
Sê-me fiel,
Sempre nutriz, mas de imortalidade.
A MEMÓRIA
Acontece que os dedos se crisparam,
Faziam as vezes de memória,
Foi preciso descobrir as tristes forças guardiãs
Para lançar a árvore e o mar.
A NOITE TODA
A noite toda a besta se mexeu na sala,
Que é esse caminho que não que findar?
A noite toda a barca tem buscado a praia,
Que são esses ausentes que querem voltar,
A noite toda a espada conheceu a chaga,
Que é essa aflição que há de nada captar,
A noite toda a besta gemicou na sala,
Ensanguentou, e denegou a luz das salas,
Que é essa morte que não vai nada curar?
*Poemas do livro “Obra Poética – Volume 1”, Editora Iluminuras, 2021.
Tradução de Mário Laranjeiras.