João Miguel Fernandes Jorge, nasceu em Bombarral, Leiria, Portugal, a 16 de junho de 1943. Poeta, prosador, crítico artístico e licenciado em Filosofia, é fundador da editora Cotovia. Ligado ao movimento pós-modernista português, sua obra envolve, além da literatura, o cinema, a música e outras artes.

De forma inquietante, a obra poética de João Miguel Fernandes Jorge apresenta uma contiguidade entre os significados das palavras com aquilo que muitas vezes as tornam indizíveis. Produz uma espécie de “microrrealismo” pelo qual a linguagem tende a testemunhar a evidência do conhecimento, ao mesmo tempo que as imagens ou metáforas se constituem como um conceito natural de expressão.

VASO INTEIRO

Também os rapazes namoram ao fim do dia
na bar ocre do museu. Santas de roca despidas
de mantos e rendas
nos vãos cegos das portadas
protegem. Rosto e corpos nem sequer sentem
esse pousar de mão sobre as cabeças.
Depois das aulas conhecem sofrer de amor.
A recato, na Praça do Colégio, ninguém descobre
o viril enleio
confidente troca de quem vai, de
ânimo, em nuvem transformados um em outro. No
bolso a suavíssima beleza do mercador de ervas
medicinais.
Uma pétala de rosa flutua sobre a praça, repercute
o recado: pisar as uvas, amassar o barro.

Sobre o terreiro empedrado da praça
um cão, com o focinho levantado, ladra. A praça
é um vaso inteiro. Não é somente um homem face
a outro homem. É uma pedra, uma árvore.
Ao redor, vozes, imperceptíveis estalidos. A praça
tem destes momentos de repouso e espera.
Tudo parece sereno dentro e fora dos seus limites.

MADALENA DO MAR

Desfaz a mínima vaga aos rés da ilha.
A mulher leva à cabeça toros de lenha.
Ao fim do dia o pescador abandona
a barca à pedra negra do mar.
Aquele leve quebrar da onda.
Em redor não ouvi vozes nem rumor
de passos.
Era o fim do dia
o ritmo sob o lado do coração
o último raio de sol aprisionou o vidro
verde de uma garrafa.

ILHÉU DAS CABRAS

O nome diz tudo
levavam da ilha maior
as cabras, que no ilhéu ficavam a pastar.
Também queria uma ilha assim
deste modo pequena, sombreada pelo ombro
da outra. Que não tivesse fantasma humano
nem sequer qualquer presença de antiga raça. Que
restasse
a urze entre as rochas
a cinza nevoada do mar
o dia e a noite.
Não precisa do mundo
somente lhe resta a viagem da ave que pousa na
escarpa
quando vem o outono
e a flor amarela dos cubres pelo fim do inverno.

O ABANDONO

O abandono esqueceu os sapatos
de ferro negro. Asa disforme. A outra asa
marcou a fogo o seu lugar
no palácio dos capitães-generais

arde com a eternidade
do musgo
da neve
da pétala.

A máscara desenvolve-se a partir de corroído estandarte,
chumbo que sustém vidro azul de vitral. Corpo de inseto, de
invertida sereia, peixe no lugar do rosto

membros de mulher na ausência da escamosa cauda.
A taça despede a luz negra,
recebe a inacabada luva de ferro.

O PRIOLO

No quarto, sobre uma cômoda,
o priolo embalsamado.
Penas de branco-sujo e creme, tons de
castanho queimado. Protege-o
o vidro de uma redoma. Mesmo na morte,
um frouxel.

Tudo se avista deste quarto –
. santos e pagelas por detrás da portas
do oratório – quando a noite e a ilha se
estreitam na cama desamada.
Vem um cheiro a maresia, a porões e os
passos de quem percorre, erradio, o

embarcadouro
sem saber a hora da partida
a hora de quem prometeu chegar. E
o pássaro na obediência da morte
fixado nas trevas que lhe povoam o canto, vê
na fronteira do lá fora
membros, ossos, vísceras, os meus erros,

o verso meu dentro do quarto. Sob a asa do
priolo, prata e luz a esvoaçar ao redor do
candeeiro entre os atos da vida.

COMOVE TANTO QUANDO FACE

Comove tanto quando a face
vem encostar-se à minha face e tenho
e movem os olhos seus

para que perceba desde a pedra
da ribeira o fragor da lágrima, quando
a despedida morre
na sala obscurecida do sono.

O vento parece esta noite um sino de luto por
detrás da gravura da janela
moço corrido de negro – o vento
e logo a chuva desde o fundo longe da

ilha. Viro a página do livro. O
anjo, guardador das gerações, devorou todas as
palavras – a mão dobra a folha, guarda as frases que restam para
a próxima madrugada. O sonho iniciou

rasto de poeira sobre o ombro da noite.

*Poemas do livro “Lagoeiros”, Editora Relógio D’Água, 2011.