Oswaldo de Camargo nasceu no dia 24 de outubro de 1936, em Bragança Paulista, São Paulo. Poeta, escritor, crítico e historiador da literatura brasileira, é uma das mais importante vozes da poesia negra no país, participando diretamente de diversos movimentos culturais que lutavam contra o racismo e pela memória das raízes afro-brasileiras. Órfão de pai e mãe desde a infância, Oswaldo cresceu em orfanatos, movidos por inclinação religiosa. Foi admitido no Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto, onde estudou música e humanidades. Nesse período começou a escrever poemas, influenciado pelas obras de Carlos Drummond de Andrade, e também poetas clássicos parnasianos. No final da década de 50 mudou-se para a capital paulista, onde trabalhou como organista da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e colaborou no suplemento literário do Correio Paulistano. Em 1959 assumiu a revisão no jornal O Estado de São Paulo e no mesmo ano publicou sua primeira obra, o volume de poesia “Um homem tenta ser anjo”.

Fez amizade com importantes intelectuais da época, como Sérgio Milliet, Clóvis Moura e Florestan Fernandes. Aprofundou seus estudos sobre o Modernismo e iniciou um envolvimento com o movimento negro, participando ativamente da Associação Cultural do Negro e colaborando com jornais da imprensa negra como o Novo Horizonte, Níger e O Ébano. Em 1972 publicou seu primeiro livro de contos, “O carro do êxito”, elogiado pelo crítico inglês David Brookshaw como o “primeiro exemplo de literatura baseada na vida urbana negra”. Em 1978 integrou a histórica edição do primeiro número dos Cadernos Negros e participou da fundação do grupo Quilombhoje, mas afastou-se por divergências ideológicas. Em 1986 organizou a antologia de literatura negra, “A razão da chama”.

Canção amarga

Eu venho vindo, ainda não cheguei…
Mas vive aqui meu velho pensamento,
que se adiantou, enquanto demorei…

Na mornidão de um solo bem crestado
(é o território estreito do meu corpo),
eu venho vindo, sim, mas não cheguei…
Pois, rasgo a minha sorte, ponho a vida
sobre esta aguda lápide de abismo;
um dia nesta pedra enterrarei
a minha carne inchada de egoísmo,,,
Eu venho vindo, mas não cheguei…

Recolho o pensamento e me debruço
nesta contemplação, assim me largo…
E, preso ao ser que sou, soluço e babo
na terra preta de meu corpo amargo…
Porém na hora exata cantarei…
Eu venho vindo, mas não cheguei…

Relembrança

Era uma vez no meu caminho…
Por andanças cheguei à terra fértil
de lírios sobre estercos, cabras
saltando na pastura, então pousei
minha sentida mágoa sobre os ramos
de um bosque, e assim eu o verguei…
Braços levados para o ar da tarde,
senti no peito a vã desesperança
daquela cena: eu, o pobre rei,
tecendo madrigais com velhos ecos
de longínquas canções de algum pastor…
Era uma vez no meu caminho…
Deslembrado de mim, me recordei:
folha no chão, estrume, antigo som
de fonte e sobre a preta face
essa tristeza que sempre haverei…

Epigrama

A tranca que junto à boca
retinha meu grito rubro
só me esfolou a palavra
de suas vestes tranquilas.
pousando sobre meus lábios
um madrigal muito freso.
A infanta ou princesinha,
sempre amiga, disse: Canta!
Entre alaúdes meu tom
deu mão às tuas sonatas
e relembrei teus motetos
trauteados aos som de um mijo.
Valeu a pena, meu branco,
navio negreiro, oceano…

Rumo

Às vezes ergo os olhos, interrogo
o seco céu sem urubu, sem nódoa
de nuvem, Deus,
que quereis?
Que eu me atropele
com minha própria sombra, que embranqueça
meu dorso e voe?

Lembro-me, sim, estive lá!

Dor no território negro!
Dor no território negro!

Os olhos, ao verem tanta noite,
abriram-se ao lume sem alento
da dúbia luz da herdade do senhor.
Lembro-me, estive lá: vi a ladainha
dos lábios, hesitante, despedir-se
com um ora pro nobis!,
e a reverência das velas rumo à sala,
brancas e retas, esguias, cavoucando
a hora escura.

Súbito um grito – ô! – cresceu depressa
ante as portas do ouvido, um “ô!” tão longo
para viver nos séculos.

Lembro-me, estive lá… ainda rouco,
adormece-me dentro e arfa
o contorno do grito desmaiado
antanho na memória.
Lembro-me, sim, estive lá!

Dor no território negro!
Dor no território negro!

Pergunta

Que vos disse, senhores, que pareço
em desespero com qualquer rapaz?
Se me amargo a contemplar-me, sou
a luta entre o ser nada e o ser demais…
Tive em meu rosto só feições tranquilas,
antigamente serenei, deitado,
sob os salgueiros de quieta vila…
Nem sempre sou a vida que proponho…
O que, porém, me faz desesperado
são os maus-tratos ao meu pobre sonho!

O saudoso guardador de reses

Bem sei que o moço corpo nesta sala
é parte de objetos: mesa, vaso,
cadeiras e a estante de verniz…
E a cidade cerca o voo fundo
do pensamento livre destes ciscos
Às vezes largo a pressa e o olho baço
percorre a extensão da pele enxuta,
e julgo ali rever o amado sítio
hoje pousado sobre lembranças…
Nas tardes, se vou só, prossigo a luta
para o retorno àquele tempo, idade
inusitada em terras desse nunca-
mais. Contudo em minha pele
tento criar, há muito tempo, um boi…
Bem sei que o moço corpo nesta sala
é parte de objetos: mesa, vaso,
cadeiras e a estante de verniz…
Porém, vos digo: o gado me persegue
até agora e eu cheiro o seu estrume,
só o detêm aqui os edifícios,
que os homens erguem contra o bucolismo…
À noite, durmo um nada, suportando
berros de cabras no palheiro d’alma…

*Poemas do livro “30 poemas de um negro brasileiro”, Companhia das Letras, 2022.