Dylan Marlais Thomas nasceu em Swansea, País de Galês, no dia 27 de outubro de 1914. Considerado um dos mais emblemáticos poetas de sua geração, tornou-se referência de movimentos de contracultura, principalmente a Geração Beat, nos Estados Unidos. Apesar de ter vivido apenas 39 anos, produziu bastante entre poemas, prosas e teatro. Inspirado em poetas românticos, sobretudo William Shakespeare, fez da poesia um extensão de sua alma boêmia, inquieta e rebelde. Em 1932, Dylan escreveu mais da metade de sua obra poética, porém, dois anos depois, com apenas 20 anos, quando mudou-se para Londres e ganhou o prêmio Poet´s Corner Livro, teve sua poesia reconhecida pela crítica. Dono de um lirismo intenso, carregado de emoção, seus poemas demonstravam influências célticas, bíblicas e do surrealismo inglês.

Em 1950, Dylan Thomas visitou os Estados Unidos pela primeira vez. Em Nova Iorque ele se tornou uma figura central da cultura pop. Se apresentava em teatros e universidades sempre lotados e inspirou diversos artistas, como o músico e poeta Bob Dylan, Nobel de Literatura de 2016, que  adotou o sobrenome Dylan em sua homenagem.

Dylan Thomas morreu de problemas em decorrência do alcoolismo, no dia 9 de novembro de 1953, em Nova Iorque, Estados Unidos.


COMO PODERÁ O ANIMAL QUE ME HABITA

Como poderá o animal que me habita,
Cuja mágica forma desenho no crânio cavernoso,
Vaso de abscessos e concha de júbilo;
Suportar o enterro sob o muro de sortilégios,
O véu invocado que amortalha o topo do rosto,
Aquele que se enfureceria, como um ébrio
Caracol das videiras ou um polvo açoitado,
Rugindo, arrastando-se, em disputa
Com os climas que lhe são estranhos,
O círculo natural dos céus desnudos,
Atraído para baixo até seus olhos fatídicos?

Como haverá este animal de enfeitiçar,
Em direção ao macho cravado numa flama retorcida à meia-noite
Que derrete os talões das cabeças leoninas e as ferraduras do coração,
Uma terra brutal nos frios píncaros dos dias campestres
Para trotar com uma fêmea relinchante pelos leitos de feno de uma milha,
Amar e trabalhar e assassinar
Sob uma luz ligeira, doce e cruel até que a terra agrilhoada enfim germine
E o negro mar rebente em regozijo,
Os intestinos se revoltam
E as garras das veias carrancudas espremem de cada partícula sanguínea
A voz enraivecida e estiolada?

Os pescadores de tritões rastejam e harpeiam
Na maré, mergulhando o seu sortilégio anzol recurvo
Com iscas nupciais de pão dourado, enquanto eu,
Com um vívido novelo, língua e ouvidos atentos à linha,
Pesco nas grutas submersas, circundadas de templos,
Presas de jubas encrespadas e animais de osso e de bruxedos,
E desenho um tentáculo,
Fisgado com um olho aberto numa bacia de feridas e de ervas,
Para arpoar a minha fúria no solo
E abater a grandeza de meu sangue.
Ainda está por nascer a besta que haverá de erguer esses poucos mares
E equilibrar o dia nas pontas de um chifre.

Longo suspiro, frio barro, mentira tosquiada,
Alto arremesso, aturdido nas pedras estripadas; ardilosas tesouras afiadas na geada
Estalam através dos matagais da força, o amor esculpido em pilares goteja
Com o pássaro entalhado, com o santo e o sol,
A boca da donzela naufragada entre cravos decepa,
Com um arbusto emplumado de flamas, a retórica do olhar feroz
E corta de súbito os vestígios do sopro vital.
Morre entre as plumas vermelhas quando o céu flutuante for degolado
E rola com a Terra vergastada:
Seca mentira, repouso espoliado, ó minha besta.
Foste expulsa aos coices de uma caverna escura, saltaste à luz relichante
E cavaste o teu túmulo em meu peito.

A MÃO QUE ASSINOU O PAPEL

A mão que assinou o papel derrubou uma cidade;
Cinco dedos soberanos tributaram a respiração,
Duplicaram a esfera dos mortos e reduziram um país à metade;
Esses cincos reis levaram um rei à morte.

A poderosa mão chega a um ombro arqueado,
As juntas dos dedos foram imobilizadas pelo gesso;
Uma pena de ganso pôs um fim ao crime
Que deu fim à troca de palavras.

A mão que assinou o tratado fez brotar a febre,
E cresceu a fome, e vieram os gafanhotos;
Grande é a mão que mantém o seu domínio
Sobre o homem por ter ele escrito um nome.

Os cinco reis contam os mortos, mas não aplacam
A ferida cicatriza nem acariciam a fronte;
Há mãos que regem a piedade como outras o céu;
As mãos não têm lágrimas para derramar.

DEITA TRANQUILO, DORME EM PAZ

Deita tranquilo, dorme em paz, tu, com tua chaga
Que arde e se retorce na garganta. Por toda a noite,
Sobre o mar silencioso, escutamos os rumores
Que vêm da chaga envolta num lençol de sal.

Sob a lua, distante tantas milhas, estremecemos ao ouvir
O som do mar flutuando como o sangue da sonora chaga
E quando o lençol de sal se rasgou numa tempestade de canções
As vozes de todos os afogados nadaram sobre o vento.

Abre uma senda através da lenta vela taciturna,
Lança ao vento, na lonjura, as rotas do barco erradio
Para que se inicie a viagem ao fim de minha chaga,
Ouvimos ecoar o som das ondas e o que diz o lençol de sal,
Deita tranquilo, dorme em paz, esconde a boca na garganta,
Ou teremos de obedecer, e cavalgar contigo por entre os afogados.

A OUTROS QUE NÃO A TI

Amigo ou inimigo, te desafio.

Tu, com tua falsa moeda,
Tu meu amigo, acolá, com ar de vencedor
Que me escondias a mentira quando atrevido devassavas
O meu segredo mais recôndito,
Atraído por faiscantes piscadelas de olho
Até que o doce dente de meu amor mordesse em seco,
Desgastando-se afinal, e eu, já trôpego, sugasse,
Tu, a quem agora imploro que te assumas como ladrão
Na memória esculpida por espelhos,
Com um gesto sorridente que jamais se esquece,
Rapidez da mão na luva de veludo
E todo o meu coração sob o teu martelo,
Foste outrora aquela criatura tão franca, tão alegre
Um familiar que nada exigia
Que nunca imaginei fosses fraudar ou crer
Enquanto deslocavas uma verdade no ar,

Pois ainda quando os amei por seus defeitos
Tanto quanto por suas qualidades,
Meus amigos eram inimigos sobre pernas de pau
Com as cabeças ocultas numa nuvem astuciosa.

AMOR NO HOSPÍCIO

.                       Uma estranha chegou
A dividir comigo um quarto nessa casa que anda mal da cabeça,
.                      Uma jovem louca como os pássaros

Que trancava a porta da noite com seus braços, suas plumas.
Espigada no leito em desordem
Ela tapeia com nuvens penetrantes a casa à prova dos céus

Até iludir com seus passos o quarto imerso em pesadelo,
.                        Livre como os mortos,
Ou cavalga os oceanos imaginários do pavilhão dos homens.

.                        Chegou possessa
Aquela que admite a ilusória luz através do muro saltitante,
.                       Possuída pelos céus

Ela dorme no catre estreito, e no entanto vagueia na poeira
.                        E no entanto delira à vontade
Sobre as tábuas do manicômio aplainadas por minhas lágrimas deâmbulas.

E arrebatado pela luz de seus braços, enfim, Meu Deus, enfim
.                       Posso de fato
Suportar a primeira visão que incendeia as estrelas.

AGORA

Agora
Diz que não,
Homem, árido homem,
Árido amante meu
Enraíza a rocha inanimada e lança a âncora florida,
Aquele que, por temor ao centro, saltasse na poeira,
Renunciaria, o tolo, à rigidez da cólera.

Agora
Diz que não,
Senhor, que seja um não,
A morte ao sim,
O sim à morte, ao homem-sim e à sua resposta,
Aquele que separasse com cuidado seus filhos a serrote
Deixaria a irmã sem o irmão.

Agora
Diz que não, senhor,
Se os mortos se agitam,
E isso, e não aquilo, é a sombra, o corvo pousado,
O que jaz lá embaixo, com o ouvido em ruínas,
A maré do galo implume arrancada às entranhas do fogo.

Agora
Diz que não,
Para que a estrela caia,
Para que o globo se esvaia,
Para que o místico sol se dissolva, o esposo da luz,
O sol que salta através do nada sobre as pétalas,
O cavaleiro da flor que leva um tombo.

Agora
Diz que não
Uma figueira
Para o selo do fogo,
A morte de calcanhares hirsutos, e o espectro gravado em madeira,
Tornaram-me místico como o braço do ar,
A veia que vai e vem, o prepúcio e a nuvem.

HOUVE UM TEMPO

Houve um tempo em que os bailarinos com seus violinos
Esqueciam suas agruras nos circos da infância?
Houve um tempo em que choravam sobre os livros,
Mas o tempo engendrou uma larva em seus rastros.
Eles não estão a salvo sob o arco do céu.
O mais seguro nesta vida é o que jamais se conhece.
Sob os signos do céu, os que não possuem braços
Tem as mãos imaculadas, e, assim como o espectro sem coração
É o único intocado, assim o cego é quem melhor vê.

A CONVERSA DAS PRECES

A conversa das preces em torno do que  irão dizer
A criança que se deita e o homem nas escadas
Que sobe o quarto de cima onde agoniza o seu amor,
Sem que impotente à criança a quem comoverá em seus sono,
Enquanto o homem, banhado em lágrimas, tema encontrá-lo morto.

Versa nas trevas sobre o som que ambos sabem irá elevar-se
Aos céus que respondem desde os verdes solos,
Desde o homem nas escadas e a criança junto à cama.
Os sons do que se irá dizer nas duas preces
Pelos lábios do sono são e salvo e do amor que agoniza

Serão a mesma dor que se eleva? A quem aquietarão?
Dormirá incólume a criança ou o homem há de chorar?
A conversa das preces em torno do que se irá dizer
Versa sobre os vivos e os mortos, e o homem nas escadas
Não achará ninguém agonizando no quarto de cima,

Mas algo vivo e cálido graças ao fogo de seus cuidados.
É a criança, descuidosa daquele a quem chegará a sua prece,
Se afogará num dor tão funda quanto é certa a sua tumba,
E notará que a onda de olhos negros, através dos olhos do sono,
A arrasta escada acima até alguém que já morreu.

*Poemas do livro” Dylan Thomas – Poemas Reunidos (1934-1953), José Olympo Editora, 2003.
Tradução de Ivan Junqueira.