Paulo Scott nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, a 8 de dezembro de 1966. Um dos escritores brasileiros mais destacados da atualidade, venceu diversos prêmios nos últimos anos, como o “Prêmio Machado de Assis”, dado pela Biblioteca Nacional, em 2011; O “Prêmio Açorianos”, em 2020, além do “Jabuti”, na categoria “Livro Brasileiro Publicado no Exterior”, em 2023. Ainda foi finalista do “International Booker Prize”, de 2022.
Radicado em São Paulo desde 2019, Paulo Scott iniciou sua trajetória literária em 2001, sob o pseudônimo “Elrodris”. com o livro de poemas “Histórias curtas para domesticar as paixões dos anjos e atenuar os sofrimentos dos monstros”. Até o momento, publicou oito volumes de poesia, além de romances, contos e novela. Algumas de suas obras foram adaptadas para o cinema, como o conto “Ainda orangotangos”, de 2004, que tornou-se longa-metragem produzido pelo diretor gaúcho Gustavo Spolidoro, e que foi vencedor do 13º Festival de Cinema de Milão, na Itália, em 2005.
1972
o ônibus de linha sai da via pavimentada
entra no emaranhado de ruas de chão batido
a ponta do meu dedo varre
o fundo do potinho de iogurte
leva o iogurte até a boca
o ônibus chacoalha
não há passageiros em pé
o ônibus entra favela – a textura do iogurte
o cheiro do iogurte perfuma o cheiro de favela
a cremosidade e o doce que fica com o azedinho
sentada ao meu lado minha avó me observa
o silêncio dela que não é pergunta
o olhar dela que se entretém comigo –
a tampa lambida
ainda grudada na borda do potinho
o alumínio da tampa
contra a minha bochecha
o ônibus favela adentro
os dedos esfregam o doce nos dedos
no brim das pernas da calça
que não absorve o acre da comunidade
apenas o cheiro artificial de coco
o cheiro que ficará – o comercial da televisão
a embalagem do iogurte
o cor-de-rosa azurado do plástico
uma fresta de luz no fundo duma caverna
um tapete voador
companhia
uma forma de escapar do ônibus
uma forma de escapar dali
DESCONTINUAR
na avenida diante da vitrine
a mãe força a cabeça da criança
que está sentada na bicicletinha
para que veja a boneca exposta
corpo e pescoço inclinados
ao encontro da força das mãos
mas ainda com a cabeça voltada
para as luzes e sirenes na avenida
e a mãe reforça
e a cabeça da criança
para a avenida volta
e então a mãe desiste
e na vitrine a boneca se levante
e é incrível – não para as luzes e sirenes
(na avenida)
dentro da cabeça da criança
DISPAROS
quando perdeu a memória
perdeu a noção-memória do vento
mas não a noção da vida
por isso os arbustos, as árvores
as flores, as folhagens do quintal
como tudo no seu novo mundo
naquele primeiro dia de ventania
lhe parecem vivas, muito vivas
longe da memória que acostuma
e depois para de surpreender
(ali no deus movimento)
descamufladas
vivas como sempre foram
RETRÁTEIS
você aponta o ânimo do mato
concluo que já foi luz dentro do novelo do mato
afago nas articulações inquebráveis do mato
a vida roça nessa caça
ainda enorme diante das plantações de soja
com o som das engrenagens
contra o qual neste momento
pingando suas raízes silvestres
daqui à fronteira
guerreiam todos os passarinhos
VEEMÊNCIA
pobre lobo
braços prontos
fumo
dos teus lábios-tecidos
éden minúsculo
efeito de garra
quantas vezes útero
de tua cunha-páprica
pó de expedição arábica
meu corpo estagnou
porque não estavas e
porque não querias me soltar
e pegou fogo
(adiando o tombo)
no fogo solar
dentro da fábrica
TEMPO
o não explicado brinca no sonho
suposto que me iguala
ao poema unido às células
à voz que me abduziu da escola
pois é dentro de um pensamento
que se veste em cura
o caos da meninice
meu lugar na humanidade
REPETIÇÃO
no dia em que Nelson Mandela é solto
saio do hospital acompanhando meu irmão
vamos de mãos dadas até o metrô equilibrando
as mochilas e a nossa proximidade
no dia em que Nelson Mandela é solto
no olhar do meu irmão o assombro dos que
buscam por aceno durante a expatriação
(e a precaução de quem escapou da morte)
no dia em que Nelson Mandela é solto
a Nothern Line queima a grossura de nossos lábios
funde nosso rodar com a desatenção dos outros
(no túnel e na velocidade) e não há como saber
no dia em que Nelson Mandela é solto
a decisão de sair do metrô e entrar num restaurante
esperando que a eletricidade atenue o destino
quando à mesa pedirmos um prato que não seja caro
mas que seja bom o suficiente pra lembrarmos
que estamos celebrando uma sorte ainda não retratada
– e meu irmão não entende quando eu digo
que Mandela foi solto
no dia em que Nelson Mandela é solto
voltamos de ônibus pro quarto alugado
no oeste de Londres onde é o nosso campo natal
(e é mais difícil sem o peso das mochilas nos braços)
no dia em que Nelson Mandela é solto
a tarefa de esquecer da alegria que foi sair do hospital
e ficarmos deitados na cama que é a do meu irmão
escutando o planeta que não para
no dia em que Nelson Mandela é solto
está o dia em que somos jovens
e nossas peles escuras mensura-crisálida marcada
pelo início da noite que invade a vidraça do quarto
no dia que Nelson Mandela é solto
a certeza de que apesar da alegria recolhida
é preciso sobreviver e até separar um pouco
de tristeza – não dar por completo ao descarte
no dia em que Nelson Mandela é solto
a morte segue desprovida – e mesmo de vigia
eu durmo logo depois que meu irmão dorme
levando as mochilas
tentando chegar no que se repõe aparte
*Poemas do livro “GAROPABA MONSTRO TUBARÃO”, Selo Demônio Negro, 2019.