Affonso Ávila nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, a 19 de janeiro de 1928. Poeta, pesquisador e ensaísta, é considerado um dos mais importante poetas brasileiros de sua geração. Teve participação ativa em importantes movimentos literários, sendo o criador do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais e de toda uma linha de pesquisas e ensaios cujo enfoque é o Barroco no Brasil. Foi organizador da Semana de Poesia de Vanguarda, um importante evento realizado em 1963,  e vencedor de diversos prêmios – entre eles o Jabuti de Literatura, com o livro “O visto e o imaginado”.

Affonso Ávila faleceu no dia 26 de setembro de 2012, em Belo Horizonte, Minas Gerais.

Soneto

Não nos traga tristeza a chuva fria
a se esgueirar nas tardes sem corola.
Sobe o chumbo (o sem cor) das coisas vivas
sufocando o clamor das vossas horas.

Sobre o ontem deitastes. Neve amiga
da pegada os sinais na terra afoga
(vede o exemplo da nuvem que destila
o fel de si na gota que se evola).

Sede o espelho, não mais. O próprio nervo
se desfaça no plano de cristal
onde a imagem enfim se compreende.

Plenitude da origem e do termo
o nimbo vos ensine o largo mar.
Sereis então o grande indiferente.

Átomos para a guerra

Com seus cones as linfas de silêncio
reinventam os rios estagnados
onde aguçam os peixes de cobalto
suas lâminas fósseis contra o tempo.

A terra infla seus úberes de inércia
esculpindo os alvéolos de asco e espanto,
os óleos do ludíbrio nos seus flancos
tramam o augúrio e a lanugem das heras.

As salamandras movem suas câmaras
sobre os ermos de sarça e de sóis túmidos,
conjurando os ocasos com seus turvos
instrumentos de sono a morte canta.

A noite impôs aqui sua moeda
com os poros de pedra e de solércia.

Declaração de princípios

Considerando este solo
de morta benfeitoria,
gleba de pássaros roucos
e nenhuma melodia,
áreas onde o sol absurdo
compôs seu último dia,
considerando esta carne
de cansaço e sem valia
com o torpor de seus músculos
no afã de luta vazia,
concluímos por lavoura
tudo aquilo que se cria
contra as astúcias do logro
e as moedas da alquimia,
seja a torre de petróleo
ou o verde na serrania,
qualquer fórmula de canto,
qualquer timbre de alegria
que são nos sonhos dos povos
sua íntima economia.

Aurora de Deus

Mais que a palavra, meu gesto,
mais que meu gesto o silêncio
em que se forma este verso,
em que se queima este incenso.

Menos que tudo esta carne,
menos que a carne este imenso
ócio de gozo, este alarde
com que meu corpo alimento.

Além  de mim a minha alma,
além desta alma teus filhos,
ainda além aquela água

mais pura que quantos rios,
aquele mar que se fez
na própria aurora de Deus.

Consoada

A boca da palavra,
a boca do jejum,
agora se redime
no destino comum.

O fruto e o vinho (a lavra
da carne e o seu repasto)
despojam-se do crime
sob o dente mais casto.

Corpo e alma em comunhão
a boca absorve a unção.

Soneto de Amor

O coração não pulsa a clave dura
cantando a rosa de si mesma urdida,
seu tempo esculpe a aurora sem medida
sobre as orlas da carne que amadura.

Nenhuma fonte aqui nos inaugura
com a floração de água surpreendida,
revolvemos os campos onde a vida
pendoa-se e aos seus dias transfigura.

Confluência de vento e flauta rústica,
em nosso lábio colhem outra acústica
os pássaros moldados pela tarde.

Entanto, despojando-se de tudo
o amor ainda se apura e, embora mudo,
faz do silêncio a fórmula de alarde.

Ciclo do Degredo

A carne está pungindo a solidão,
a alma já desposou a sua ilha.
Nenhuma flor assiste o coração
onde a tristeza reconstrói a quilha.

Sobre si mesma espalma-se esta mão,
contrai-se e a própria ânsia é o que dedilha,
aprofunda seu vinco a fruição
de uma saudade que ninguém partilha.

Aferem lábio e lábio o mesmo gosto,
abre sulcos de frio pelo rosto
o rio sem memória de uma fonte.

Os olhos cicatrizam-se no medo,
confundem-se no ciclo do degredo
um corpo e seu amor sem horizonte.

Cantiga do Demônio de Wall Street

numa guerra sem quartel
digladiam poeta e bel-
zebu justa de papel
sec’lo e meio de farpel
entre o escrito e o granel
grito leilão ou bordel
apregoando o cartel
mil por cento very well
por biafrense um guinéu
do bélico ontem do tel
do net do aeronovel
luz a laser do painel
do hoje no telenovel
frisson orgamos esporrel
de americano e europeu
subiu a bolsa ouropel
cada qual a seu troféu
encha-se logo o farnel
presidente tabaréu
ao fmi tire o chapéu
sim senhor meu coronel
o arábico cascavel
seu bote dá infiel
preço aumenta do tonel
pânico ao cu do mundéu
o economês malandréu
rearticula o parléu
alguém há-de ser o réu
taxa o cartão ao povéu
do cheque especial o pinel
salvemos nosso banquel
e o demo ri canastrel
eu inventei esse infernel
que se ardam ao fogaréu
folga-me tanto boléu
vale mais o meu pornéu
que na ira santa ou versel
sousândrade em sobrecéu

Improviso

A palavra justa
a mim não pertence,
busco-a nessa luta
em que não se vence,
trabalho diário
pelo amor de sempre.

A palavra triste
a mim não pertence,
perco-a numa lide
cujo ardor me vence,
trabalho diário
pelo amor de sempre.

A palavra louca
a mim não pertence,
bebo-a noutra boca
e ela me convence,
trabalho diário
pelo amor de sempre.

*Poemas do livro “Homem ao termo – Poesia reunida (1948 /2005), editora UFMG, 2008.