Marly de Oliveira nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo, no dia 11 de junho de 1935. Poeta, ensaísta e professora de língua, literatura italiana e hispano-americana, foi esposa de João Cabral de Melo Neto. Ligada à terceira geração do Modernismo brasileiro, venceu o Prêmio Jabuti de poesia, em 1998, com o livro “O mar de permeio”.

Apesar de ter nascido no Espírito Santo, Marly viveu e passou a infância e adolescência na cidade fluminense de Campos dos Goytacazes, onde iniciou sua trajetória literária, publicando poemas em jornais e revistas locais. No final da década de 50, recebeu bolsa de estudos para cursar História da Língua Italiana e Filologia Românica na Universidade de Roma. Neste período conheceu o poeta e professor Giuseppe Ungaretti, que havia lecionado por na Universidade de São Paulo. Entusiasmado com a sua poesia, ele a apresentou para os principais círculos literários da cidade, até mesmo em um programa de rádio-televisão.

A obra poética de Marly de Oliveira abrange os livros “Explicação de Narciso” (1960), “A Suave Pantera” (1962), “O Sangue na Veia” (1967), “Contato” (1975), “A Força da Paixão” (1982) e “O Mar de Permeio” (1997). Organizou também a antologia poética de João Cabral, em 1995.

Marly de Oiveira faleceu no Rio de Janeiro, em  1º de junho de 2007, aos 71 anos.

1. As mãos que usou tão levemente,
os cabelos puxando para trás,
diante do espelho quase sem reflexo,
não conseguem cobrir o corpo frágil;
nada encobre também a chama viva,
devolvida a si mesma, ao centro,
ao núcleo de si mesma,
daquilo que ela é e que se é
e nem se tem consciência;
não sonha com o extremo
das sensações o êxtase o delírio:
prefere a iminência, a véspera,
a espera, o quarto dando
para uma janela.

*

5. Ela tem vida própria,
pensava ele: entre nós,
nunca haverá fusão,
escrevendo como quem desenha
e se apaixona pelo retrato,
a boca, a fala, o pacto
com o infinito.
Ela, des lions respectée.
jamais vai permitir
qualquer contato,
tão próxima que o estender
a mão alcançaria
a sua mão, e
tão intransitiva
que se retrairia
para sempre.

*

6. E pensar que eu mesmo imaginei
a dança, a sala, onde te moverias
ou eu te moveria.
Mas te imobilizei, como os antigos
fizeram com seus mitos,
diante do espelho, onde só tua imagem
caberia como símbolo
daquilo que não quer só o sensível,
mas também o concurso do intelecto.

*

24. Pode o acaso ser uma esperança?
Aquilo que nem se admite
entre na vida pela porta
errada e acaba no poema?
O poeta sabe que inquietações,
expectativas travam o motor
da inteligência e o corpo vibra
enquanto o vinho desce até
o texto,
deixando escapar o que não quer,
abraçado à estátua (ou poema).

*

28. árvore que se faz papel,
onde o poema se escreve,
onde o que parece lúdico
é exercício e confidência,
onde ciência e loucura
se fazem tão racionais,
que o poeta nem se assusta.

A folha em branco o seduz,
a palavra ganha forma
e a forma, uma estrutura
que se quer de roupa nova,
e de repente se revela
o que sequer se sabia,
o que existia bem no fundo
e surge nas entrelinhas.

*

48. Perdura o afeto; em espera
o que o outro busca, mas para
que seja durável, um
se desumaniza e volta a ser
apenas um reflexo no jogo vário
de espelho e devoção, paixão
e expulsão do paraíso. E porque
eu sou eu e tu és tu, uma força
me leva a perpetuar alguma semelhança
– reflete o poeta –
mesclada a uma total dessemelhança.

*

50. Nunca falar em prazer ou desprazer,
em ilusão ou desconhecimento
mútuo: sentir apenas que um intenso
calor incendeia os girassóis
e uma vontade súbita
de entender de onde viemos e por que
nos puseram frente a frente
para sentir de novo o desencontro,
o desencontro, mascarando o intenso
fluir de sangue, lá onde nasce a alegria
e a força de viver nunca ociosa.
Sempre a mentira ocultando com
ironia a humildade de amar
de alma tão limpa que, se se pusesse
a mesa para comer, se contentasse
em olhar, em busca na voz,
numa certa inflexão, aquilo
que se queria ouvir, para deixar
que cada coisa siga o seu destino,
enquanto outro alimento nos sustenta.
Ser para alguém sem que esse alguém
desconfie do quanto bastaria um gesto,
um início de frase, musical ou não,
para salvar-nos.

*Poemas do livro “UMA VEZ, SEMPRE”, Massao Ohno Editor, 2000.