Donizete Galvão nasceu em Borda da Mata, Minas Gerais, no dia 24 de agosto de 1955. Poeta e jornalista, fez parte da poesia modernista mineira, influenciado por nomes como Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura, Henriqueta Lisboa e Murilo Mendes. Sua obra é marcada pelo olhar humano à realidade da vida, utilizando metáforas e simbolismos, muitas vezes em tom irônico e com acidez, para desvelar problemas sociais e aprofundar percepções da nossa existência.

Donizete Galvão faleceu no dia 30 de janeiro de 2014, em São Paulo.

Irmão inventado

Na noite de olhos secos,
um outro repete meus gestos.
Num quarto igual a este,
interroga o branco das paredes.
Se durmo, sonhará ele meu sonho?
Beberemos os dois
a água do mesmo rio?
Meu irmão inventado,
o que eu faço não sei.
Quem me lê é quem me cria.
Espalho cacos de um espelho.
Minha face por inteiro não verei.
Veja você por mim qualquer dia.

Aves

As aves migram.
Levam os sonhos
nas suas asas.

As aves voltam.
Os sonhos ficam
nos quintais
das outras casas.

A vida real

Cidade sem aura. Sem sombras.
Dizem que um padre rogou-lhe uma praga.
Árvores de altas copas foram arrancadas
e, do cimento, brotou uma fonte luminosa.
As árvores não prosperam,
mutiladas por podas até o toco.
Folhas e flores enervam donas de casa
maníacas por calçadas limpas.
Chique é ter o quintal cimentado
e os cômodos revestidos de carpete.
O padre conta suas reses.
Pardais cegam nos bancos da praça.
Reconhecem aqui o reino da politicagem.
No carnaval, pretos, bichas e pobres
descem do Buracão ou sobem da Santa Cruz
e podem dançar nas ruas,
acompanhando os filhos de boas famílias.
Mas não passam da porta do clube.

Silêncio

De pedra ser.
Da pedra ter
o duro desejo de durar.
Passem as legiões
com seus ossos expostos.
Chorem os velhos
com casacos de naftalina.
A nave branca chega ao porto
e tinge de vinho o azul do mar.
O maciço de rocha,
de costas para a cidade
sete vezes destruída,
celebra o silêncio.
A pedra cala
o que nela dói.

Acidente

Creu que era vinho
a água salobra que bebia.
Creu que era caminho
o beco que ali existia.
Creu na hora certa
uma senha o salvaria.
Abriu a porta.
Caiu no fosso.
Silêncio nas escadarias.

Memória

O tempo muda de marcha.
Ora passa como lesma
e deixa sua gosma
entre os números do relógio.
Ora, como trem-bala,
vara as linhas da agenda
e dilacera as estações da memória.

Pontos de vista

Lá vai o homem
enterrar seu morto.
Olhos fincados no chão,
gane de dor.
O rabo entre as pernas.
Na sarjeta, surge ela.
Cachorra. Pele e costelas.
Lambe um osso branco e largo
em que não resta sombra de carne.
O olhar de súplica
de quem tem medo, dela,
encontra o olhar, dele,
que inveja a sorte
e o osso da cadela.

Oceano cinza

Olhos de sal
queimam o caramujo.
Olhos de chuva ácida
pousam sobre copos-de-leite
que vicejam em torno do tanque.
Olhos de limão
para carnes de moluscos.
Mil olhos nos fitam.
Mil olhos nos furam.
Piscam no oceano cinza
com suas seduções de abismo.
Caos de corpos
que a correnteza arrasta,
sem que possamos tocá-los.
Faces tão amadas
afloram à tona,
envoltas por um véu de espuma.
Tudo que nos é dado a maré leva
e devolve como restolho.
Olhos de gaivota
que rejeitam o peixe
e miram o fígado
do homem na areia.

*Poemas do livro “Poesia Reunida”, Círculo de Poemas, 2023.