Daniel Jonas nasceu no Porto, em Portugal, em 1973. Poeta, tradutor, dramaturgo e Mestre em Teoria da Literatura, pela Universidade de Lisboa, é tido como um dos autores mais inovadores da atual poesia portuguesa. Vencedor do Grande Prêmio Teixeira de Pascoaes, da Associação Portuguesa de Escritores, em 2015, foi eleito um dos finalistas ao prêmio de Poeta Europeu da Liberdade.

Daniel Jonas possui uma carreira incomum. Aos mesmo tempo que apresenta uma obra autoral extremamente original e moderna, com ênfase nos temas comuns da vida cotidiana nas cidades, sua base literária, no entanto, é clássica, a partir das suas traduções de William Shakespeare e John Milton. Por causa disso, as estruturas de seus poemas apresentam fortes traços líricos.


Amantes

No limo do linho
polvos
atribulados

no enleio
dos seus
tentáculos

vulneráveis
jorrando tinta
em autodefesa

como se ameaçados
procurassem
escrever.

Velho mestre

O silêncio
de um fruto sobre a mesa,
apenas ferido
por um gume de luz
no meridiano.

Mas nenhuma ameaça,
nem os arnês de dedos
formando-se no horizonte,
apenas o golpe de sol
afiado na vidraça.

Um fruto
é um velho mestre
esperando na luz
as trevas
do amadurecimento.

Resistência dos materiais

Ah! Gosto que nada seja!
Preciso que tudo fique aquém de si
para me sentir feliz do meu sossego
sentindo-me eu ainda
aquém de tudo e de mim.

A medida justa de tudo o que respiro
é ser aquém daquilo para que tende
e eu viver em hysteresis
tendendo em esforço mas sendo
a toca material
para onde me recuo
e me recuso.

Contenta-me que não comova a simpatia
da sorte ou o propício vento
e que todas as coisas não tombem
a meu favor.
Contenta-me ser o desajuste inflexo
dos materiais que não fecham ou apertam,
a vã esperança de um esforço
de dois pontos desavindos,
a poente coarcta ainda que por pouco
que não agrafa duas margens entre si
nem serve de jugo a nenhum rio
ou de parábola à engenharia do ver.

Sou jusante, escusado de mim,
o pior de dois mundos,
o intervalo preciso entre
nada

e coisa nenhuma
mas sendo por pouco tudo
como um sonho acordando.

Ah! Náusea pensada disto tudo!
Colher que abocanho convexa
e não reparo que colher ainda é
sendo contrária.

Os dias declinando

Tudo o que um dia te foi belo e amplo e prometedor
reúne-o e faz dele forragem e um telhado
para os teus dias inglórios de colmo

porque não haverá um dia um único
que não te aponte as graves falhas do que és
com a lanterna do esplêndido assomo do que foras.

Eu sei-o. Vou olhando-os fixamente nos olhos,
mosca aprisionada na cozedura da teia,
como repentino encontro com um velho conhecido
que julgara não se haver perdido de vista.

Aula de natação

Sobrevivemos em extremas condições.
Agora esforçarmo-nos por levantar a cabeça
e é uma boia à tona da água
sob a claraboia da catedral
do imenso baptistério

peixes passando para lá
e para cá cardumes
hidráulicos combatendo a gravidade
de nadadores
rastejando, as suas pás trotando a água

como soldados feridos
rebocando as suas pernas
atrás dos seus  variegados capacetes
luzidios.
Alguns aleijados, mutilados, alguns torsos

milhares de peixes superficiais
avenidas de combatentes
aforando as águas,
combatendo as águas
sobrevivendo-lhes –

olha aquele além em plena
fisioterapia, de que guerra veterano?…
tentando combater o adverso
já em pura adversidade
vede-os

sobre as águas vão
nesta república
procuram a igualdade da Atlântida.
A água é a mesma
mas uns são melhores nadadores.

Poética

Fechar a tampa do abrigo
e respirar
com serena convulsão
lançado o grande dirigível da escrita

depois retesar o arpão
e espremer o choco polvo
seus tentáculos tensos
na placa marmórea
ou na balança

é um negócio violento,
a testa escreve-se, um mundo progride,
decanta-se a bolha do nível,
esgaça-se a gaze

depois da fenomenologia dos petroleiros
a refinaria,
o guarda-nocturno de olhos
na trovoada e solidão
no monitor.

Elementário

O verdadeiro sentido das palavras
é o que o poema consiste
em falar do que não pode ser dito a quem
se quer dizer

ou o verdadeiro sentido das palavras
é o que o poema consiste
em não falar do que pode ser dito a quem
se quer dizer

ou o verdadeiro sentido das palavras
é o que o poema consiste
em não falar do que não pode ser dito a quem
se quer dizer

ou o verdadeiro sentido das palavras
é o que o poema consiste
em falar do que pode ser dito a quem
se não que dizer

isto, claro, partindo do princípio
de que há um sentida das palavras,
verdadeiro, um poema e um
a quem se queira dizer.

*Poemas do livro “Os fantasmas inquilinos”, Editora Todavia, 2019.