Mariana Melo é jornalista na Justiça Federal do Rio de Janeiro, atriz e mestranda em Dança pela Faculdade Angel Vianna. Pesquisa questões ligadas a identidade feminina, violência de gênero e sexualidade, com atravessamentos na Psicanálise e nas Artes Visuais.

exemplar

tenho medo de que me amordacem
me cortem os cabelos
me tirem a roupa e me vistam em saco preto
sóbrio e triste
sociável e correto
tenho medo de que não vejam beleza em nada
nem no que é feio
nem no que é bonito
nem no que é vergonhoso ou imoral
tenho medo de que se irritem com meus sussurros
até com meus gritos
todos eles e cada um
tenho medo de que me façam uma limpeza sensorial
e eu seja cor na obscuridade
tenho medo de que arranquem de mim
o que não é ginecológico
o que não é prático
o que não é maternidade e prazo
tenho medo de ser tola
medo de ser inteligente
medo
muito medo
medo de que percebam que não sou um deles

sinos na banheira

olhando de cima
meu corpo parece morto na banheira
um legume em conserva
minha aliança
uma prataria velha
pesada e antiquada
.               a âncora do amor com sua espinha dorsal
deveria a ela ser grata
não sou mais um barco que apanha do vento
ou um fantasma estendido sobre as chamas
cidade vigília
cidade holocausto
bandejas com cabeças e ossos

aqui é o santuário
com a virgem dormindo dentro da pia batismal
dois pés de cera derretem sobre o altar de louça
brilhando na neblina
eles choram
nunca reparei como eram tão feios

sinos arrotam na garganta da água
sim
eu quero um novo batismo
as moléculas primordiais
as conexões magnânimas
madonas ninando o bebê transparente
brânquias frescas

mas a inconstância não é suicida
nem fia cacos de alma a mãos apaziguadas

escamas de couro não amolecem sem
que lhe desçam por cima escovas de aço

até que a morte os separe

estico a pele da coxa
e nela desdobra-se um mapa hidrográfico
por onde deslizam o gozo daquele homem
os sorrisos paralisados na igreja
as células sacramentais que me justificam

estou tão magra que não sinto meu corpo
nem a mão que me precipita na cama
haveria alma em um corpo sem carne?

é verão e as azaleias perderam seus gomos
tediosas xícaras de café
.              desidratadas no chão

você me planta debaixo do sol
virado do avesso
porque descosturei a pele que detinha este rochedo
mas  olha  amor
a seiva não descola mais pelas cascas fendidas
.             os grãos não palpitam mais seus tentáculos em defesa

meu sangue recua sobre si mesmo
.        assim que se aproxima da terra
.        porque  olha  amor
é verão e os fios se laçaram ao
.        comprimento do tear
mesmo sabendo que não são imunes
.                              ao seu próprio laço

*Poemas do livro “Boneca Overdose”, Urutau, 2023.