Eduarda Chiote nasceu em Bragança, Portugal, em 1930. Poeta e escritora, é licenciada em Ciências Histórico-Filosóficas e trabalhou na área da Psicotecnia. Iniciou sua trajetória literária em 1975, com o livro, “Esquemas”. Venceu o Prêmio Teixeira de Pascoaes em 2006, com o livro “O Meu Lugar à Mesa”. Atualmente vive em Lisboa.
MALDIÇÃO DE ESPELHO: SOMOS E PARECEMOS. DÓI.
Contas-me a história do tempo
e eu ouço-a
no pudor que me arranca do meu
onde surges
pássaro todo em fogo.
Se te invejo o orgulho pleno, nu,
teu bico vaza-me a retina, e essa, única lágrima
que se cobre de sangue,
é luz inacessível.
Puderas nela ter acesso à levitação
e não te pareceria ser, uma criança, enredo
simples,
mas o que nas pálpebras da estátua abre
para claro pavor.
A INFÂNCIA: ESSE VAZIO
Não é por já saber voltar as páginas do livro
ou levar a colher à boca
que distingo, do vazio, o sobressalto.
Às vezes penso que nasces das torneiras,
e então, cúmplice dessa facilidade,
ponho-me a rodopiar
como se de água em água, meu corpo de água
em água se afogasse.
Censuras fria, docemente. Não sabes, da alegria,
o lado indiscreto da tristeza,
nem o quanto afeta
a polidez que a indiferença passa.
Entre o pesadelo de
não apareceres e o receio de partires,
onde tão atroz infelicidade?
Nenhuma previsão me é possível,
só pelo naufrágio vences
a prisão de culpas e desastres.
A INFÂNCIA É O BERÇO DA IDENTIDADE FERIDA
Ele chama a cadeira de cadeira,
o lápis de lápis,
a flor de flor,
mas não consegue chamar-se simultaneamente
eu/tu.
O tu não penetra o corpo
como outrora o berço que dele fazia parte
ou as mãos que embalando-o
se ocupavam de si. As mãos do tu
não têm força para se ocuparem do nome,
por isso tapam os olhos,
a fim de que o seu eu
os descubra.
A INFÂNCIA
Ainda há pouco,
animal mergulhador,
descia por rochosas fendas,
seu lume.
Fora, a terra recuperava as pedras
do torpor enobrecendo-lhe os pulmões,
mas eu ignorava-as.
Via-me nelas e nas plantas e selvas
e países
e florestas
bicho incendiado,
e só queria, mãe, de novo regressar
a peso de água.
*Poemas do livro “Branca Morte”, Edição & etc, 1994.