Solange Padilha é natural de Belém/PA e vive no Rio de Janeiro. Poeta, poeta visual, atriz e pesquisadora, morou em Paris durante a ditadura militar, formando-se em Ciências Sociais pela Sorbonne. Fez mestrado em Ciências Sociais pela PUC/SP e é doutora em Antropologia da Arte pela PUC/SP. Editou o primeiro jornal feminista brasileiro, ‘Nós Mulheres’ (1976/1979, SP).

Livros publicados: Safographia (poesia, Rio de Janeiro/RJ: Ed. Casa 6/1986); Dadá ainda anda (poesia, Rio de Janeiro/RJ: Ed. do autor/1992); Escrita labial (poesia, Rio de Janeiro/RJ: Ibis Libris/2014); Sobre aquilo que não cessa (poesia, São Paulo/SP: Patuá/2020).


vaidade

o primeiro fio branco despontou no cucuruto da cabeça
olhando a contraluz parecia efeito do verão
não era.
as rugas mal percebi
vi o estado já gravado no amanhecer da resseca
no espelho disse
mudou tudo
mas
nada se compara ao
primeiro
fio
branco
na buceta.

agradinho

sabe pão
(meu pão)
comprei pra nós dois
aqueles brincos de farmácia
com direito ao furo
ao buraco
que nem puta
menina
sem estilo
é tudo igual

anos 70

o-que-qui tá-me-olhando?
me fuzilou o olhar
cai andando para trás
entrei no bar, pedi dois maços de light um gim bem artificial
um homem com a mão entre as pernas
uma ficha telefônica
tocaia na boca do baixo
segunda-feira
— não era para ele partir, disse o cineasta ao lado
pensei comigo que…
ele repetiu
pensei na gaivota do Dias/estrelas/espaço
ele insistiu que continua brigando —  por-um-metro-quadrado-de
achei quadrado demais
e saí voando

anos de chumbo

cada dia mais
cada vez menos
cada dia menos
cada vez mais
depois não dava para parar
continuar
vinha o enjôo a náusea
mas não era qualquer náusea
qualquer enjôo
um cigarro, dois.
uma maço, três.
câncer.
canseira de repetir as palavras
o ato
para não esquecer
e repetir para gastar
e ver aquela coisa inútil desaparecer
depois de acabada
recomeçar
e pouco a pouco acabar
amor
não conseguia aguêntar
não era chato, era muito
foi pouco
a ferida aos poucos não sangrava
sem tempo
um dia ele disse grosso
quero uma mulher, mas só pra mim
lascivo/malandro
naquele momento só quis ir embora
mimada/flipada
bíblica…
no máximo no mínimo
ainda quente…

*Poemas do livro “Safographia”, Editora Casa 6, 1986.