José António Duro nasceu em Portalegre, Portugal, a 22 de outubro de 1875. Poeta decadentista, foi colaborador da “Revista de turismo”, iniciada em 1916. Em 1950, quase cinquenta anos após a sua morte, a Câmara Municipal de Lisboa homenageou o poeta dando o seu nome a uma rua na zona de Alvalade.

José Duro publicou, aos 21 anos, os seus primeiros versos em um folheto intitulado “Flores”. Os poemas já apresentavam o seu temperamento melancólico, pessimista e mórbido, influenciado por diversos autores, como Charles Baudelaire, António Nobre, Antero de Quental e Cesário Verde. Sua principal obra, Fel, de 1898, período que sofria de tuberculose, praticamente anunciou a sua morte, que veio a acontecer apenas alguns dias depois da publicação.

José Duro faleceu no dia 18 de janeiro de 1899, em Lisboa, Portugal.

COVEIRO

Sonho que sou coveiro, e sinto os braços frágeis
Quando pego na enxada a rasgar um coval,
Ou quando tomo um crâneo e analiso o frontal,
Desse cárcere estreito em que houve sonhos ágeis…

Entro no cemitério a horas doloridas,
E, à indecisa luz das claridades frouxas,
Arrasto o meu olhar pelas gangrenas roxas
Dum corpo de Mulher a desfazer-se em vidas…

Um corpo escultural, imaculado, inerme,
Entregue à sedução fantástica do Verme,
Que o desfigura, a rir, numa vertigem louca…

Um corpo que exumei, alucinadamente,
Em ânsias de remorso, em raivas de demente,
Para poder beijar-lhe a apodrecida boca!

?

A Escultura ideal – Aroma de lilases -,
Que à noite vem beijar-me a horas sonolentas,
Tem no místico olhar cintilações sangrentas
E nos lábios sem cor angustiadas frases

A mortalha de Noiva, em que o seu corpo esconde,
Vem laivada de terra e pútridas gangrenas,
E na mirrada mão que já colheu verbenas,
Traz uma alma a chorar que trouxe não sei donde…

Ora eu tremo de ver essa Visão dorida
Que me persegue sempre e me esfacela a vida
Como o Vento do Outono a débil flor da haste.

Mas, por mais que lhe fuja, estreita-me nos braços,
E diz-me, numa voz da rigidez dos aços,
<<Esta alma é a tua alma e eu sou quem tu amaste!>>

O MEU AMIGO

Ele era um doido bom, um doido visionário,
Que andava quase sempre d’olhos rasos d’água,
E, às vezes, costumava a soluçar, com mágua,
A lenda original dum Fado extraordinário…

Entrava na taberna assim que anoitecia,
Bebia só absinto e nunca se fartava;
Daí, quem sabem lá se no absinto achava
Um meio de esquecer a dor que o oprimia…

Amava a cor do luto e odiava a cor do ouro,
E é certo que deixou – estranho tipo aquele!… –
Poemas de nevrose em que só punha Choro…

E eu, que desejo ser o que ninguém deseja,
Julguei-me, por ventura, um doido como ele…
Que um doido já eu sou, embora não no seja!

DOR SUPREMA

Onde quer que ponha os olhos contristados
– Costumei-me a ver o mal em toda a parte –
Não encontro nada que não vá magoar-te,
Ó minha alma cega, irmã dos entrevados.

Sexta-feira Santa cheia de cuidados,
Livro d’Ezequiel. – Vontade de chorar-te…
E não ter um pranto, um só, para lavar-te
Das manchas do <<Fel>>, filhas de mil pecados!…

Ai do que não chora porque se esqueceu
Como há-de chamar as lágrimas aos olhos
Na hora amargurada em que precisa delas!

Mas é bem mais triste aquele que olha o céu
Em busca de Deus, que o livre dos abrolhos,
E só acha a luz das pálidas estrelas…

CEGO

Eu hei-de embebedar o coração um dia
E assassiná-lo a rir de encontro ao peito escuro…
Depois, cinicamente, ir pô-lo no Monturo.
Deixá-lo apodrecer ao sol e à ventania…

Hei-de cegar o olhar, despedaçar-lhe a vista,
Porque não torne a ver quem o despreza tanto.
Cisterna do Desgosto e Fonte do meu Pranto:
Há-de esmagar-te, sim, a minha mão d’artista…

Não quero coração, nem mesmo quero olhar,
Mas, cego, buscarei o teu amor alvar
– Veneno que me perde e néctar que me anima…

E, se acaso o encontrar, Mulher robusta e nova,
Ou seja numa vala ou seja numa alcova,
Hei-de calcá-lo aos pés, hei-de escarrar-lhe em cima!

*Poemas do Livro “Fel”, Guimarães Editores, 1983.