Miguel-Manso nasceu em Santarém, Portugal, em 1979. Poeta, estreou em 2008 na literatura, com a publicação das obras “Contra a Manhã Burra” e “Quando Escreve Descalça-se”. Estes dois primeiros livros, juntamente com os três que se seguiram – Santo Subito (2010), Ensinar o Caminho ao Diabo (2012) e Um Lugar a Menos (2012) – lançados igualmente pelo próprio, compõem a série Carimbos de Gent, uma coleção de cinco pequenos volumes de poesia, cujas capas nasceram a partir de uns carimbos que o autor comprara naquela cidade belga. Em 2018, Miguel-Manso fez parte da delegação de autores de língua portuguesa na Feira do Livro de Leipzig.


Tentemos um Outro Exercício

comecei a traduzir
o silêncio de Rimbaud
do original

encontrei no
fundo de um poço em Harar
fotografias ainda mais

raras
e bolorentas

Soneto

luzes e achados
dizia

coisas que de dentro saíam
sabe como é

vai-se a ver um dia e era uma pequena biblioteca
toda palavras e pó ainda me lembro
das personagens que esqueci

sabe
a gente pensa que é feita de milhões
de coisas cá dentro mas

depois olha o céu aliás
o cimo

o cimo como uma estrada secreta
o vento as vozes as aves
edição aumentada Júpiter
estacionário país fotogra-
fado

os anacronismos sim os
incunábulos

repito os nomes de Omã

os turcos estavam às portas de Viena
e o sangue retrocesso de Lisboa então
Mar da Palha e telhados

as crianças crescem
os navios gritam nos estuários
desenhos amplexos ar

os olmos as paredes tortuosas
as pessoas ínvias
céu

o cimo do meu pânico
a minha chamar-lhe-ia solidão
pornográfica

de outro modo

o que eu queria era
a passagem toda de Mário
Cesariny mas não naquele

dia de chuva que a Inês e poucos sabem
António Grade aqueles dois músicos

um holandês louco
um português magro fumando
cachimbo

e aquele ator que agora não me lembra
o nome e depois até fez (não havia nada a perder
deve-lhe ter parecido)

o anúncio de um Banco

Vida Transitória

há uma fotografia de Ruy Belo
e há também aquela praia muito tênue de Não há morte
nem princípio

ou há uma fotografia do meu pai numa
beira-mar de Moçambique

sentado com um outro que nunca soube
quem era, óculos escuros – a mocidade

– esse outro

o meu pai olhando o mar para lá do
fotógrafo como se o fotógrafo

e
agora
quem vê a fotografia segurando-a
com a mão (vindoura)

como se não existissem
não existíssemos mas que fosse minha
também

aquela praia onde Ruy Belo
ainda não usava barba e cabelo à Ruy Belo
à

Allen Ginsberg (gente que já morreu
gente vindoura)

tudo gente que habitou longamente
em algum momento uma praia

uma praia
que eu sei que há e que aconteceu
também quando eu morri

quando eu também fui jovem
e poeta numa fotografia ou num reflexo

de garrafa

a minha imagem
à beira de um Verão segurando
desde o peito a vida

Casamento de Bangkok

disse-me

aprendi o essencial de tailandês
para não me perder na rua
saber o que vou comer nos restaurantes
dizer-lhe que a amo

mas não o suficiente para
lhe explicar o porquê

por isso
aponto com o olhar as árvores do pomar
são o nosso pequeno resguardo
de beleza

seguimos o perfume
ela sabe

Quatro Cigarros no Café des Anges

de resto
cai cedo a noite na
Rua de la Roquette
a um domingo

o leitor afastará o fumo
destes versos e atentará
apenas na morena
de gorro vermelho

junto à janela

*Poemas do livro “Contra a Manhã Burra”, Editora Mariposa Azul, 2009.