Jorge Cândido de Sena nasceu em Lisboa, Portugal, a 2 de novembro de 1919. Um dos mais importantes intelectuais portugueses do século XX, naturalizou-se brasileiro em 1963, enquanto esteve no país exilado. Produziu uma vasta obra literária, entre poesia, ensaios e romances e traduções. Viveu os últimos anos de vida nos Estados Unidos, como catedrático efetivo de Literatura Comparada na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara. Grande parte da sua obra foi publicada postumamente pelos cuidados da viúva, Mécia de Sena.

Dono de um espírito livre e independente, as obras de Jorge de Sena foram autênticas extensões da sua personalidade combativa. Fez parte do principais movimentos ligados à arte contemporânea portuguesa e buscava aprofundar conhecimentos diversos às temáticas de seus livros. Com isso, só em relação à poesia, publicou mais de 20 coletâneas, que abordam idealismos, filosofias sobre a vida, e percepções sobre as relações humanas diante a própria história da humanidade. Faleceu a 4 de junho de 1978, aos 58 anos, em Santa Bárbara, Estados Unidos.

POST-SCRIPTUM

Não sou daqueles cujos ossos se guardam,
nem sou sequer do que o vindouros lamentam
não hajam sido guardados a tempo de ser ossos.

Igualmente não sou dos que serão estandartes
em lutas de sangue ou de palavras,
por uns odiado quanto me amem outros.

Não sou sequer dos que são voz de encanto,
ciciando na penumbra ao jovem solitário,
a beleza vaga que em seus sonhos houver.

Nem serei ao menos consolação dos tristes,
dos humilhados, dos que fervem raivas
de uma vida inteira a pouco a pouco traída.

Não, não serei nada do que fica ou seve,
e morrerei, quando morrer, comigo.

Só muito a medo, a horas mortas, me lerá,
de todos e de si se disfarçando,
curioso, aquel’ que aceita suspeitar
quanto mesmo a poesia ainda é disfarce da vida.

“QUEM A TEM…”

Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.

Trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo
e me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

FIDELIDADE

Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?

Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.

GLÓRIA

Um dia se verá que o mundo não viveu um drama.

Todas estas batalhas, todos estes crimes,
todas estas crianças que não chegaram a desdobrar-se em carne viva

e de quem, contudo, fizeram carne viva logo morto,
todos estes poetas furados por balas
e todos os outros poetas abandonados pelos que
nem coragem tiveram de matar um homem,
toda esta mocidade, enganada e roubada
e a outra que morreu sabendo que a roubavam,
todo este sangue expressamente coalhado
à face íntegra da terra,
tudo isto é o reverso glorioso do findar dos erros.

Um dia nos libertaremos da morte sem deixar de morrer.

UM EPÍLOGO

Quando estes poemas parecerem velhos,
e for risível a esperança deles:
já foi atraiçoado então o mundo novo,
ansiosamente esperado e conseguindo
– e são inevitáveis outros poemas novos,
sinal da nova gravidez da Vida
concebendo, alegre e aflita, mais um mundo novo
só perfeito e belo aos olhos de seus pais.

E a Vida, prostituta ingênua,
terá, por momentos, olhos maternais.

ASCENSÃO

Nunca estive tão perto da verdade.
Sinto-a contra mim,
Sei que vou com ela.

Tantas vezes falei negando sempre,
esgotando todas as negações possíveis,
conduzindo-as ao cerco da verdade,
que hoje, côncavo tão côncavo,
sou inteiramente liso interiormente,
sou um aquário dos mares,
sou apenas um balão cheio dessa verdade do mundo.

Sei que vou com ela,
sinto-a contra mim, –
nunca estive tão perto da verdade.

I

Ao desconcerto humanamente aberto
entendo e sinto: as coisas são reais
como meus olhos que as olharam tais
a luz ou treva que há no tempo certo.

De olhá-las muito não as vejo mais
que a luz mutável com que a treva perto
sempre outras as confunde: entreaberto,
menos que humano, só verei sinais.

E sinta que as pensei, ou que as senti
eu pense, ou julgue nos sinais que vi
ler a harmonia, como ali surpresa,

oculta que para eu vê-la agora,
meu desconcertante é o desconcerto fora,
e Deus um só pudor da Natureza.

OS TRABALHOS E OS DIAS

Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro
e princípio a escrever como se escrever fosse respirar
o amor que não se esvai enquanto os corpos sabem
de um caminho sem nada para o regresso da vida.

À medida que escrevo, vou ficando espantado
com a convicção que a mínima coisa põe em não ser nada.
Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser habito.
Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre,
quando fico triste por serem palavras já ditas
estas que vêm, lembrados, doutros poemas velhos.

Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem.
E os convivas que chegam intencionalmente sorriem
e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do mundo
e desenhei uma rena para a caça melhor
e falo da verdade, essa iguaria rara:
este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.

*Poemas do livro “Não leiam delicados este livro – 100 poemas de Jorge de Sena”, Editora Bazar do Tempo, 2019.