Abel Ferreira da Silva nasceu em Cabo Frio, Rio de Janeiro, a 28 de fevereiro de 1945. Poeta, escritor e compositor de grandes sucessos da Música Popular Brasileira, tem parcerias com João do Vale, Sueli Costa, João Donato, Moraes Moreira, Ivan Lins, Jards Macalé, Zé Renato, João Bosco, Raimundo Fagner, entre outros. Também foi gravado por cantoras como Simone, Gal Costa, Maria Bethânia, Nana Caymmi, Elis Regina, Nara Leão e Barbra Streisand. Autor de mais de 300 composições, recebeu dois prêmios Sharp. Formou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professor da mesma universidade, além de ter lecionado na PUC do Rio.


MEU ASSUNTO

Você
pela rua
é minha
assinatura.
Sua alegria
minha caligrafia.
Seu jeito
meu texto.
Sua figura
minha escritura.
Seu ar de ausência
minhas reticências…
Tudo junto:
meu assunto.

PALAVRA ESCRITA

Palavra escrita
eu sei, é assim
notícia de mim
proscrita
papel amarelado
folhas de amendoeira
de um verão passado

EU NÃO PENSO NA MORTE

Eu não penso na morte
estou tão vivo
eu nem penso na vida
estou amando
eu não penso no amor
estou sentindo
eu não penso em sentir
estou chorando.

CONFIANÇA

Sou destruído de fé religiosa
mas confio. Não tenho alternativa.
Eu não conheço o engenheiro
mas entro neste prédio.
Não conheço o piloto
e embarco no avião.
Não sei quem plantou
colheu e preparou:
mas bebo o vinho
e como o pão

ASAS

O que este punhal tem de ave
são as asas da imaginação
a dor voa mas volta sempre
e pousa em meu coração

Voa gaivota breve, voa leve
que o mar tem alma secreta
e guarda a carne dos peixes
e a solidão do poeta.

MÃE

E então começou a acontecer comigo
de encontrar a todo instante minha mãe.
Passo e na fila da carne
lá está ela esperando a vez
chego comovido e irritado
vou tocar-lhe o ombro e dizer
bobagem, mãe!
pede a carne pelo telefone
mas logo percebo o engano, me afasto
e a senhora desconhecida
ganha mais um metro na direção do balcão.
No táxi
vou gritar ao motorista que pare
minha mãe está na esquina sob o sol
não há dúvida é ela
se protegendo da chuva sob a marquise
perplexa no arrastão ondeante dos corpos esguios
perigosamente lenta na correnteza dos meninos sem mãe
subitamente estrangeira
(minha mãe tão brasileira!)
sob códigos confusos
minha mãe nas mulheres entrevistadas pela TV
reclamando dos preços absurdos de tudo
nos bancos da rodoviária
na fila dos aposentados
minha mãe se multiplicando pelas ruas de minha cidade
onde carrego meu buquê de esperanças devastadas
e sonhos implodidos
um mil séculos-luz longe do ninho
do ponto obscuro
uterino
de que hoje sou futuro.

*Poemas do livro “Só uma palavra”, Editora Record, 2000.