Jacinto Fabio Corrêa nasceu em 4 de junho de 1960, no Rio de Janeiro (RJ). Poeta, jornalista e publicitário, trabalho como diretor de Integração com o Mercado do Senac Nacional. Com vários livros publicados, surgiu no cenário literário brasileiro em 1989, com a publicação de Entre Dois Invernos. Atualmente produz e se apresenta em recitais de poesia.
AUGE
Retomo o poema
do ponto em que o deixei,
como se o mundo
não nos tivesse interrompido.
Falávamos do auge
de uma bromélia sem flor
a possuir todos os namorados:
basta vê-la, basta vê-la.
Rendido, entrego-me
aos encantos do que
natural e belamente vive
sem saber que um dia morrerá.
Não são assim os grandes amores?
A COLEÇÃO DE RANCORES ESTÁ INTACTA
Guardou o que pôde
O que não precisava também.
Durante estes anos
meu peito foi o galpão
onde depositamos esperanças
para justificar nossa humanidade.
Fracos de espírito
fartos de vazio
hoje o galpão contabiliza
assaltos e depredações.
Levaram quase tudo.
Menos o que deveriam.
PAPÉIS
Queria receber de suas mãos
– poderia ser dos olhos –
um poema de amor escancarado
de causar inveja aos demais amantes
um poema que provocasse suspiros
e me obrigasse a amá-lo
– independente da minha vontade –
pelo resto da vida.
Mas o poeta sou eu.
ESCREVO O QUE TE PEGO PENSANDO
Não posso pedir que me creias.
Sou tão pequeno que às vezes distraio de mim
e volto a ser aquele menino sem-graça
a encher e esvaziar baldes de areia
diante do mar abarrotado de crianças.
Nunca tive medo de ser idiota
ou pensar que me consideravam idiota.
Lembro bem, já rapazinho,
de uma mocinha a perguntar:
Quem: Aquele com cara de bobo?
Sim, era eu. O que sabia repará-la mais triste
que as outras mocinhas do colégio
por não ter um namorado.
Nunca lhe devolvi o insulto
porque ela também estava certa –
sempre tive cara de bobo.
Infelizmente um bobo que sabia pensar
e preferia que ninguém percebesse que sabia pensar.
Talvez essa liberdade sem ambições
tenham me feito menor do que deveria.
Por certo estranharás minha confissão
já que me vês como o mar
que olha o menino sem-graça
a encher e esvaziar baldes de areia diante de si.
Mas esta é a única verdade que disponho.
Tão pequeno que às vezes me perco de mim
e aceito ser carregado nos ombros à beira-mar
aos gritos de “menino perdido, menino perdido!”
até por ti ser encontrado e devolvido à casa.
Não posso pedir que me creias, mas que continues
a dividir por dois o mundo feito para tantos
a caminhar pelas calçadas sem silêncio,
me dando a mão para atravessar a rua.
Ao teu lado correrei todos os riscos
de os sinais estarem fechados quando parecerem verdes.
Mesmo que eu saiba e finja não saber que morreremos,
seguirei contigo.
A ÚLTIMA REFEIÇÃO
Quem se acha exímio ás
na política eficaz dos pregões
não passa de um capataz
capaz de compactuar falsas declarações.
É judas, barrabás de si mesmo
cego alcatraz com asas para dentro.
Só merece viver mais um dia
para roer o osso assaz proscrito
servido no calabouço da culpa fugaz
onde a última contumaz refeição
não satisfaz o apetite voraz
da vil e mordaz traição.
O FALSO SONO DOS JUSTOS
Mais do que ouvidos, as paredes do escritório
possuem fotografias de ex-presidentes:
as bocas, mortas, ainda ditam regras.
Onde começa o desvio de verba
e termina o desvio de caráter?
São apenas rostos de vidro sem sorrisos
blindados pela garantia do tempo que não volta:
as calças, curtas, não cabem no enquadramento.
Onde começa a prática do favorecimento
e termina a prática do individualismo?
As gravatas, impecavelmente trajadas,
escondem a abertura dos botões da camisas:
os privilégios, escusos, se ajeitam em buracos.
Onde começa a trama do peculato
e termina a trama da imunidade?
As paredes nunca são limpas ou pintadas
não se mexe em time sempre vencedor:
os pregos, fiéis, mantêm a trajetória de corromper.
Onde começa o exercício do poder
e termina o exercício do autoritarismo?
Apagam-se as luzes, lacram-se as portas
é chagada a hora do necessário descanso:
aqui começa e termina o falso sono dos justos.
HOLERITE
Avaliações equivocadas
premeditadas tramoias apontam
o desligamento sumário do trabalhador.
Gavetas vazias e em uma caixa de papelão
a misturar documentos, retratos
uma certa esperança de reconhecimento.
Um verso escapa do embrulho
e pelos corredores consola os olhos de quem
ainda não sabe conviver com injustiças.
O poeta jamais será demitido.
*Poemas do livro “Fatário”, 2017.