Justo Jorge Padrón nasceu em Las Palmas, na Espanha, no dia 1 de outubro de 1943.  Poeta, ensaísta e tradutor, foi um dos mais reconhecidos escritores espanhóis fora do país, sendo traduzido para mais de 30 línguas.

Depois de estudar direito, filosofia e literatura na Universidade de Barcelona, ​​regressou em 1967 à sua cidade natal, onde passou a se dedicar à literatura. Durante este período publicou os seus primeiros poemas e entrou em contato com outros jovens poetas espanhóis, sendo incluído, em 1968, na antologia “Nova Poesia Espanhola”, organizado por José Agustín Goytisolo. Em 1976, foi selecionado pelo Itamaraty e pelo Instituto de Cultura Hispânica para percorrer a América Latina como representante da nova geração da poesia espanhola.

Sua obra é marcada pela profundidade intelectual e percepções sobre a consciência humana. Temas como a vida, a morte, ações e consequências, sonhos e realidades, são induzidos por cenários extremamente imagéticos, metafóricos e simbolistas.

Justo Jorger Padrón morreu em Madrid, na Espanha, no dia 11 de abril de 2021, aos 77 anos, vítima da COVID-19.


CONSCIÊNCIA

Já nem conservas a fibra dos sonhos
que reclame a herança perdida da tua sorte?
Exiges certezas, uma fidelidade
de acordo com a paz do coração,
livre dos presságios onde espreita
o exausto pulsar do vencido.
Quanto desdém usurpa a tua integridade.
Ainda no erro manténs o orgulho
de ser entre medíocres o senhor dos náufragos.
Os teus olhos esculpiram no ar distante
a esperança, a única possível
de não ouvir a chuva de qualquer infortúnio.
É tão difícil perdurar, continuar
a insistir num ténue registro das palavras,
procurando-as pelos anos sombrios,
como se elas salvassem ou desculpassem
esta inquietude de merecer a vida.

ALGO INVISÍVEL FLUI AO NOSSO LADO

Acaso despedir-se da vida
é contar as vezes que nos ficam
por habitar os cálidos costumes.
Talvez estas vulgares coisas do quotidiano
nos ofereçam as imagens do que um dia foram:
encontros soberanos com a luz
e com esse mistério fugaz da beleza,
a voz de uma mulher, aquele poema,
um certo instante encantado do crepúsculo,
quando o ar se incendeia nas varandas
e o vale, como uma história, adormece nas suas palavras.
Alguma coisa fica latente nos nossos lábios,
um prazer, uma inquietação perante o impronunciável,
e a brisa levanta a torre do jasmim
e sussurra legendas de amor e saudade.
Algo invisível flui ao nosso lado,
o delírio estelar, a música do cosmos
palpitando nas sua espera deslumbrada.

ARMADILHA

Decidido a aceitar o que o instante briga,
sem desdenhar sequer a atitude
ou o ritual deteriorado da resignação,
o que em rigor exijo de mim mesmo,
com a honra mínima da sobrevivência,
é não cair jamais no que mais tortura,
amarela gargalhada do inferno,
essa perversa armadilha: a esperança.

OS ANOS

O ardente impulso vai consumindo os anos.
Algo indeterminado vai-nos diluindo
na sua invisível tempestade de areia.
A nostalgia começa a questionar-nos
e nenhuma resposta alcança no seu horizonte.

Semelhante a uma exausta discussão de família,
a nossa conversa perde o sentido
e converte-se num olhar que não ouve;
as palavras também não são palavras,
nem sequer se arriscam a serem lágrimas,
uma prática inerte cega-as e substitui-as.

Quase sem perceber perdemos os contornos,
a distância torna-se difusa, a realidade desce
até chegar à cave de uma vida afastada
e ali ficamos presos na nossa única sombra.

DO FUNDO DO VINHO

Do fundo do vinho uma mulher me invoca
com um insinuante perigo. O seu corpo ilumina-se
como uma exaltada chama envolvida pelo Inverno,
como chuva sepultada despedaçando os seus latidos,
desfazendo-se numa envolvente música,
tão desolada e tão bela até me cegar.

O ouro fascinante do seu sorriso
leva-me ao delírio de celebrar o seu corpo.
Com o seu feitiço me invade da aura
da sua sombria rosa, que absorve na sua corola
o absoluto tempo que vivi.
E assim, preso e errante, no seu inquieto perfume
levemente distante, desterra-me no vinho
sob a maldição da sua memória.

O ESPECTRO DA ANGÚSTIA

Que sensação essa de nunca nos teus olhos se fazer sombra,
que sinuosa evidência tão desolada,
de um vazio sem fim perante a posse
entregue, impossível e despida!

Quem é que pode consolar este desejo
que o ser está a perder entre os vivos?

És tu, inocência demoníaca,
nessa tentação sem misericórdia,
a que ainda reclama este fogo medular?

A paixão secou a sua nascente.
És já o desterrado do teu próprio corpo.
Corrói-te e persegue-te o espectro da angústia.
Perde-se o tato nos cegos sentidos,
deseja ardentemente o seu reforço e não o encontra.

Consumida a copa erguida da chama,
a luz do sangue apagou-se,
e no desassossego do futuro,
essa voz sem piedade do teu exílio sentencia:
Só o que perdeste é o teu deserto.

ÁGUAS NOTURNAS DO DELÍRIO

Água das palavras, sons que são vozes
emanando das alturas, da altiva cúspide
do sonho e da sua demência. Águas vertiginosas
caindo num grande salto para o vazio,
com a luz dos rostos em cada tenso instante.
Rostos que são inícios, vozes que são conjuros,
imagens, histórias, anos que se sucedem
na veloz cascata do tempo e das vidas.

Com essa força do mais livre impulso,
com a fatalidade constante da noite,
angustiam-se e transcendem-se na sua fosforescência,
elevam-se antes de mergulharem no espaço ignorado.
Águas trêmulas de arrebatamento e orgulho,
como alucinações de um delírio de estrelas
por nuvens e por seres de exaltada miragem.

Deslumbramento azul do espaço,
noite que surge em frenesim de espumas
para os territórios que a consciência queima.
É a lei dos corpos palpitantes
magnetizando o poder da sua luxúria,
soletrando o nome ardente do desejo.
É a corrente oculta que as paixões
do fogo e das cinzas levam
para os clandestinos inferno das lágrimas.
Águas incorruptíveis, águas dormideiras,
fluem sobre as asas dos pressentimentos,
sobre o terror das revelações,
para purificar a nossa linguagem.
Sem a menor piedade, sem mal o conhecer,
com o seu véu de brumas cobrem toda a memória.

Águas, rostos velozes do morto, caindo
das densas câmaras do olho
até à alma perdida do esquecimento.
Águas que foram dias, momentos fulgurantes
na rica aparência do viver
sob a claridade da criação.

Como poderei voltar a esta margem do mundo?
Mãos contra as vozes e suas luzes de vertigem,
como se ainda quisessem deter
o curso inevitável de tudo o que sucedeu.
Mãos sobre os lodaçais, corpos decapitados,
nudez acesa que se perde
afundando-se até ao fim, sentindo a eclosão,
o peso do nada no silêncio.

*Poemas do livro “Extensão da Morte”, editora teorema, 2000.
Tradução de Luís Filipe Sarmento.