Maulana Jalaladim Maomé, também conhecido como Rumi de Bactro ou apenas Rumi, nasceu a 30 de setembro de 1207, em Vakhsh (Império Corásmio), uma dinastia muçulmana sunita de influência persa e que atualmente fica no Afeganistão. Poeta e teólogo, é considerado uma das vozes persas mais populares no mundo, transcendendo fronteiras étnicas e culturais.

Rumi viveu grande parte da sua vida na Anatólia, atualmente na Turquia, mas que na época ainda era parte do Império Bizantino. Escritos em novo persa, a sua obra poética foi extensivamente traduzida para várias línguas, inclusive ocidentais, e transpostos em formatos diversos. Dentre os temas mais abordados por ele, a unicidade de Deus e do sufismo, são descritos com profundas reflexões existenciais, sentimentos e simbolismos. Rumi faleceu no dia 17 de dezembro de 1273, aos 66 anos, em Cônia, Sultanato de Rum, atualmente região da Turquia.

[O pão do meu verso]

Meu verso é como o pão do Egito:
a noite passa sobre ele e já não pode mais comê-lo.

Devora-o enquanto está fresco,
antes que o recubra a poeira do deserto.

Seu lugar é o clima cálido do coração,
ele não sobrevive ao gelo deste mundo.

É como um peixe na terra seca:
estremece por um instante e logo parece.

Se queres comê-lo e o imaginas fresco,
terás de invocar muitos ídolos.

O que agora bebes é tão somente tua imaginação.
Isto não é uma ilusão, companheiro!

[A viagem do sonho]

Com a oração da noite,
quando o sol declina e se esconde,
fecha-se a via dos sentidos
e abre-se o caminho ao não-visto.

O anjo do sono conduz então os espíritos
como o pastor o seu rebanho.
Para além do espaço, em pradarias transcendentes,
que cidades, que jardins ele nos mostra!

Quando o sono nos rouba a imagem do mundo,
o espírito contempla mil formas e maravilhas.
É como se habitasse desde sempre essas paragens,
já não recorda a vida na terra,
nem sente cansaço ou tristeza.

O coração liberta-se por inteiro
do peso do mundo, de toda a opressão,
e já nem percebe os cuidados que lhe são dedicados.

[O vinho do invisível]

Verte, ó saqi, o vinho do invisível.
Com este signo, come este nome,
falemos do que não tem signo nem nome.
Deixa-o jorrar em abundância,
que esse ato enriquece a alma;
embriaga-a, ajuda-a a alçar vôo.

Vem, derrama mais uma taça,
ensina aos saqis a arte da escanção.
Como fonte que transborda do coração da pedra,
rompe o jarro do corpo e da alma.
Faz a felicidade dos amantes do vinho
e a inquietude dos que só fruem o pão.

O pão é o artífice da prisão do corpo,
o vinho, a chuva que cai no jardim da alma.
Quanto a mim, uni os extremos
das águas que cobrem a terra;
cabe a ti alçar a tampa da ânfora do céu.

Fecha esses olhos que só vêem imperfeições
e abre aqueles que sabem contemplar o invisível,
que não se detêm diante de mesquitas, de ídolos,
pois os desconhecem por completo.

Silêncio!
É nesse silêncio que surge o tumulto
e faz calar nosso mundo inferior.

[Quando as uvas se tornam vinho]

Quando as uvas se tornam vinho,
imitam nossa capacidade de mudança.
Quando as estrelas giram ao redor do Pólo Norte,
anelam nossa consciência que desperta.

O vinho embriaga-se conosco
e não o contrário.
O corpo cresce a partir de nós
e não o contrário.

Nós somos as abelhas
e nosso corpo, a colméia.
Fizemos nosso corpo.
Célula por célula, nós o fizemos.

[A mente é um oceano]

A mente é um oceano.
Quantos mundos estão ali girando,
misteriosos, apenas vislumbrados.

Como uma taça
flutuando no oceano,
assim é o nosso corpo.

Há de encher e ir ao fundo,
sem que nenhuma bolha
assinale o lugar em que repousa.

O espírito está tão próximo que não o vês.
Busca-o! Evita ser o cântaro cheio d’água
cuja boca está sempre seca.

Não te pareças ao cavaleiro
que galopa noite adentro
e não vê a própria montaria.

[Não penses]

Não penses. Não penses.
Os pensamentos são como a chama
que de alto a baixo tudo consome.

Perde a razão,
endoidece de embriaguez e assombro,
e de cada broto nascerá a cana-de-açúcar.

A bravura é demência, tira-a da cabeça, renuncia!
Como o leão e os homens, renega as vãs esperanças.
Os pensamentos são armadilhas,
é proibido desperdiça-los.

Para que tanto sacrifício por migalhas?
Se não te absténs desse alimento,
é inútil querer livrar-te de tais ardis.
Se a avidez reclama, sê surdo aos seus apelos.

[O que não somos]

A dor que atraímos
transforma-se em alegria.
Vem, tristeza, aos nossos braços
– somos nós o elixir dos sofrimentos.

O bicho-da-seda come as folhas
e faz seu casulo.
Não possuímos a folhagem desta terra
– somos nós o casulo do amor.

Apenas somos
quando em nada nos tornamos.
É quando perdemos nossas pernas
que nos tornamos corredores.

Calo minha boca.
Direi o resto do poema
de boca fechada.

*Poemas do livro “Poemas Místicos – Divan de Shams de Tabriz”, Attar Editorial, 1996.
Tradução de José Jorge de Carvalho.