Afonso Henriques Neto nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, no dia 17 de junho de 1944. Representante de uma das famílias mais importantes da poesia brasileira, os “Guimaraens”, é filho de Alphonsus Guimaraens Filho e neto de Alphonsus de Guimaraens. Outro grande destaque literário da família é Bernardo Guimarães, autor de “Escrava Isaura”. Formou-se em Direito pela primeira turma da Universidade de Brasília em 1966. Trabalhou na Fundação Nacional de Arte (Funarte) entre 1976 e 1994. Desde 1976 é professor do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), tendo se doutorado pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1997. Membro da Academia Mineira de Letras, o poeta fez parte da Geração 60, porém começou a publicar apenas às vésperas do surgimento da Poesia Marginal no final dos anos 1970, sendo incluído no livro “26 Poetas Hoje” (1976), de Heloisa Buarque de Hollanda.

Forja

Forja dos deuses de olhos de insônia
eis os instrumentos de vossas chamas
os metais ferventes de vossas insânias
as sementes de relâmpagos
que vieram acender palavras tormentosas
verbos a rasgarem o granito
o fundo do firmamento
o tecido silencioso do mito.

Não haver poesia
sem o hálito em fogo de maresias.

Sol

Encontrei o gatinho morto
debaixo do sofá.
Tivera o pudor
de se esconder
para partir.
Coloquei-o em uma caixa
e deixei que o sol
lhe cobrisse o corpo
lá no canto onde preferia dormir.
A morte não é treva do verbo
fogo impensável
estrela incriada.
A morte é tão só
o gatinho morto
a partir sem porto
no breu do sol.

Treva

Quando qualquer língua descreve
delírios supremos
de que forma conviver
com esse verbo extremo?

Pensemos em Hiroshima
ou em Auschwitz
martírios supremos
linguagem que se espedaça
contra feroz vidraça.

E não sabermos o que fazer
dos fragmentos sangrantes.
Se os escondemos no peito
ou nos verbos delirantes.

Quando qualquer língua
se torna tão faminta
que nem mais se pode ler
a palavra pobreza.
Quando a língua rasga
qualquer resto de nobreza.
Treva podre sobre a mesa.

Eterno

Estranho lume
e não haver nome
faz da imagem
flor sem origem.

Eterno é o que circunda
este silêncio de abismo
sem antes ou depois
e que em ausência se afunda.

Que assim se fundam
vagos versos confundidos
com tudo quanto sem nome
no ar se enreda
e some.

Ainda viagem

Há uma navegação sem ruído
embarcação
a roçar a pele do mito
na escuridão.

Quantos continentes descobertos
dentre quanto morto!
Na viagem sem olhos
florir tanto aborto.

E não se ter praia
ou porto de alegria.
Bater de remos
em frase vazia.

Segredo

Quando o poema se anunciou
pensei lançar toda a vida
em amplas asas de ouro
a ruflarem por sonhos de sol.
Mas os versos murmuravam tão longínquos
que a luz emudecia
salivava silêncio.
O poema tentava germinar
por detrás da treva
que chovia em grumos
assombrosos.
Asas trancadas em sonho
vazio.
Que o poema não se resolvia.
Fui caminhar na praia
ver o temporal esmurrar
o ouro violentado do dia.

Doer

nascer dói.
vísceras se contraem
e um céu se desarticula
sem voz
para chover cacos
cactos
pactos de sangue
por todos nós.
toda estação se estilhaça
para nascer.
a primavera
sempre gritará na dor
por brotos que latejam
até rasgar o silêncio
espesso impacto.
visceral doer
sem olho ou tato.

Saudade

Não pode me esquecer da refeição
que belas mãos para mim prepararam
dói qual as carícias que se perderam
junto à fúria do amor, doce coração
que feito louco ardia e em meu pensar
fervia tal um pulsar de estrelas, pois ver-te
se fazia fogo de vertigens verdes.

Saudade? Ter-te no espelho de perder-te.

*Poemas do livro “Nervos de mar”, Editora 7 Letras, 2024.