Nascido no Rio de Janeiro, em 10 de maio de 1974, Alexandre Guarnieri é poeta e historiador da arte. Integra o corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens. “Casa das Máquinas” (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia. Em 2015, foi o vencedor do 57º Prêmio Jabuti, na categoria Poesia, com o livro “Corpo de Festim”. Também publicou “Gravidade Zero” (2017) e “O Sal do Leviatã” (2018) pela Penalux. Em 2019, reuniu parte de seus poemas na antologia “Arsênico & Querosene” (Kotter). Seus 4 primeiros livros podem ser baixados gratuitamente (em pdf) no Drive da poesia brasileira contemporânea.

neon

quem poderia supor a estranheza de um gás aceso,
que, para exercer seu fascínio, e revelar o mais
concêntrico dos segredos, houve quem conseguisse
confiná-lo a vácuo, em estreitas serpentinas
de vidro fino, só obtidas de um sopro controlado
sobre um fogaréu típico de maçarico, todas formas
moles, antes que lhes derretesse o sólido molde, e
para flagrar-lhe o lume gasoso sob o fulgor do
argônio tido como inofensivo, bastasse atravessá-lo
ainda, com ímpeto e magnetismo, a mínima fagulha
física ou única chispa, lá, uma faísca fixada
à indissoluta nuvem da sua coluna vertebral ?

de súbito há luz habitando um tubo (ou no casulo)
onde é insone o neônio! eis o rito contraditório
de tão espessa cintilação, só contida às expensas
da mais fina vitrina, dos parênteses da tripa vítrea,
colorida, cujo conteúdo é clarão contínuo e vivo,
câmara de tortura abrigando o animal luminescente,
escorregadia enguia elétrica nadando na obscuridade
de um aquário profundo, entretanto curto, enquanto
há como causar-lhe, sem escrúpulos (para renová-lo:
fogo-fátuo), a quase asfixia com vapor de mercúrio;

caso lhe emprestem alguma figura, curvas de letras
ou grafias inteiriças são acrescentadas à brancura
dessa queimadura iluminada pela própria cicatriz;
muito embora fria, sua luz pisca, vacila pela via,
ofusca vistas (letreiros zunindo o burburinho de
um séquito de insetos), a ferida cujo jorro de
radiação halógena quase machuca o olho, o chafariz
de fótons como se oriundo do couro cabeludo d’alguma
medusa abraçada a uma bobina de tesla (bruxa ou
fada) numa estranha fábula sobre a eletrocussão

– Alexandre Guarnieri –
(poema publicado em CASA DAS MÁQUINAS / RJ: Editora da Palavra, 2011)

ENTREVISTA

01 – O que significa ser Poeta na atualidade?

– Se tirarmos do caminho o advento da internet e a relativa democratização dos meios de impressão e circulação das produções poéticas hoje (tecnologias novas, etc e tal), em essência, ser poeta na atualidade talvez não difira muito de ser poeta em qualquer outra época: treinar o olhar (pra dentro e pra fora) e a escuta do mundo, lavrar as possibilidades da palavra, ter coragem de dar a cara à tapa e não alimentar quaisquer ilusões sobre a garantia de que um dia será lido, muito embora o trabalho nunca se dê por terminado.

02 – Qual é a sua visão sobre a produção poética contemporânea?

– Há um cenário mais drástico e amargo. Neste cenário, vemos muitas ideias diferentes do que seja a poesia (práticas, processos, procedimentos, estéticas). Ideias que, em grande parte, se digladiam, se estranham entre si. A partir delas, criam-se nichos bastante específicos e marcados, tanto para a criação quanto para a recepção das suas respectivas produções. Existem poetas de muros, afeitos às fronteiras que habitam. Há poetas encastelados em seus Olimpos particulares, que só reconhecem iguais ou preferem não reconhecer ninguém. Talvez porque já satisfeitos com as respostas que deram para as próprias perguntas ou tenham desistido de perguntar. De dentro de suas perspectivas, não estão errados. Entretanto, e felizmente, este não é o único cenário.

Há poetas que circulam entre esses nichos, pondo à prova os próprios preconceitos estéticos, buscando convivência, tentando entender e respeitar todas as poesias, desafiantes de suas fronteiras imaginárias. Há quem escreva na solidão e isso parece bastar. E há quem escreva a partir do caos das relações com tudo e com todos. Esses buscam rios poéticos que se retroalimentam e se aliam, se separam, mas se reencontram. São poetas de pontes que abraçam o ir e vir da pluralidade entre tantas possibilidades estéticas. Como editor de Mallarmargens (desde 2012), entendo como fundamental essa circulação irrestrita. É importante superar o maniqueísmo do certo e do errado, suas forças limitantes. A arte deve libertar-se disso. A crítica deve confrontar-se constantemente com este desafio. O que não significa que as tensões devam desaparecer. Essas tensões também são matéria-prima da poesia. A arte se alimenta de todas as fricções.

03 – Qual é a função social da poesia e do/a poeta na atualidade? Ele/a precisa ser atuante e se posicionar?

– Há poetas que sentem que é imprescindível uma manifestação explicitamente política em suas produções, outros estão completamente desligados desta conexão entre o tal brado do bardo e a consciência social. Existem também os que creem que a política (inevitavelmente) atravessa todos os campos da vida, mas preferem investir esteticamente, pelo entendimento de que a estética é capaz de alterar as consciências, portanto é também revolucionária ou tem potencial revolucionário. Não há uma só maneira de um artista intervir politicamente. Muitas vezes uma revolução estética tem mais potência do que o impacto de uma arte eminentemente panfletária. Só desconfio dos que não se deixam afetar pela condição social e pela dor do outro.

Quem não vê o outro raramente se vê. A vida é um jogo de espelhamentos e saber disso enriquece a nossa sensibilidade e a nossa imaginação. Só através da nossa capacidade de imaginar podemos nos colocar no lugar do outro e oferecer nossa solidariedade, fazendo somar nossa voz a voz do outro. Sem imaginação, a própria humanidade cede à barbárie, que é a vida desprovida de arte.

04 – Inspiração ou transpiração: o que é mais importante na sua produção poética?

– Nem um, nem outro: em cada poema há uma negociação sendo travada entre estes dois estados. Mas talvez eu entenda a inspiração de forma um tanto materialista, como a soma dos estímulos servindo de combustível a uma espécie de máquina da inquietação que, quando ligada, produz as condições para o aparecimento do poema. A inspiração seria o combustível dessa máquina, e a transpiração a manutenção de suas partes, a lubrificação de suas peças.

05 – Quais são suas principais referências poéticas? Como elas acrescentaram na sua escrita?

– Minhas referências vêm não apenas da própria literatura (mais da poesia que da prosa), mas são também “traficadas” de outras linguagens artísticas, música, cinema, fotografia, hqs, etc. Minha escrita tem muito de amálgama da qual participam muitas referências e linguagens. Sem ela, acho que minha escrita não teria condições de existir. Qualquer arte deve sempre a este constante reaproveitamento (que envolve negação e afirmação) do que foi produzido antes, mesmo que de forma menos clara e consciente. Não acredito em geração espontânea, e sim na transmutação cultural.

06 – Versos livres ou métricos? Linguagem coloquial ou erudita? Você diferencia poesia de poema? Como? Ainda há espaço para poemas líricos, clássicos e ditos “fixos”?

– Na arte nada deve ser tornado tabu. Tudo depende da sensibilidade de quem recebe. Toda escrita há de encontrar o seu leitor. Pode ser que demore, pode ser que haja desencontro. Mas se tratando de autores e leitores, acredito no encontro das sensibilidades. No meu caso, fui fazendo certas escolhas, nunca quis surfar nas formas fixas (se é que elas existem mesmo), meu lirismo é tortuoso, e as escolhas por palavras insólitas, bastante sonoras, colhidas no dicionário, apontam para o horizonte do estranhamento. Do meu ponto de vista, o enriquecimento da experiência poética também passa pelo desconhecido, o que acabou me afastando do coloquialismo e lirismo mais tradicionais. Muito embora a tradição deva ser constantemente revisitada, explorada, mapeada, cada poeta sabe o caminho que mais o toca e quase sempre suspeita das razões pelas quais isso se dá.

07 – Por que você escreve?

– Por necessidade de me organizar e me entender. Para compartilhar inquietações comigo mesmo. Para me espantar e estender esse convite ao espanto a quem aceite o desafio. Porque sinto necessidade de dizer, de manusear a linguagem, de explorar a sua materialidade. Foi um caminho que encontrei, quis seguir por ele e hoje é parte indispensável da minha vida cotidiana, da minha rotina. Não complicaria mais que isso.

08 – Estamos historicamente em uma geração que busca “revisar” os acontecimentos do mundo e trazer à tona as versões oprimidas. Com isso, muitas obras clássicas passaram a ser criticadas, assim como seus autores. É possível separar os tempos e não associar esse passado à atualidade?

– Devemos reagir criticamente ao passado, entender as motivações (sejam elas de cunho ético ou estético) por trás das decisões que outros tomaram antes de nós. Isso é fundamental para embasar decisões melhores, menos injustas e violentas, mais humanas e inclusivas, menos comprometidas com qualquer sectarismo. Mas operar uma revisão crítica do passado não significa apagá-lo porque aí, mais dia menos dia, correríamos o risco de esquecer as razões pelas quais decidimos ser melhores.

09 – Como você vê a efervescência da poesia e o aparecimento de inúmeros poetas nas redes sociais? Esse aumento traz benefícios? Ajuda ou atrapalha? Aproxima a poesia das pessoas ou banaliza a qualidade de produção?

– A efervescência é maravilhosa, desde que saiba lidar bem com a própria ansiedade. Geralmente é a ansiedade que atrapalha e banaliza. Num passado recente, não era raro ver poetas renegando seus livros iniciais. Anos mais tarde, se sentindo mais amadurecidos, os julgavam menores, precoces demais, pobres. Ainda assim, independente do que pensaram e sentiram sobre eles, esses livros acabaram entrando para as suas histórias e percursos. Um livro renegado pelo próprio autor pode ser muito importante para alguém. Quem poderá decidir se um livro, um poema, uma obra de arte é desnecessária? Toda arte é necessária? São perguntas difíceis para a crítica. E o distanciamento histórico? Os próprios poetas são seus melhores críticos? Ao julgarmos que algo é banal por não possuirmos os filtros certos para compreender sua razão de ser, seremos os seus melhores juízes?

10 – Como poeta, de que maneira você acha que será lembrado/a um dia?

– Torço para que as gerações futuras possam lembrar da minha produção com consideração, com generosidade, desde que essa generosidade não faça dela algo que ela não é.

*Entrevista retirada do livro “Na Poesia Viva: A Poesia Contemporânea Em Frente e Verso”, de Igor Calazans, publicado pela Editora Viés, em 2020.